Olho no Olho

Projeto de Lei reacende debates sobre cotas

Camilla Muniz

imagem olho no olhoNo último dia 1º de julho, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal aprovou, em decisão terminativa, o Projeto de Lei 546/07 — proposto pela senadora Ideli Salvatti (PT/SC) —, que estabelece o sistema de reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas nas universidades e nas instituições federais de educação profissional e tecnológica. Embora a medida não abrangesse, originalmente, o ensino superior, a inclusão foi sugerida pelo senador Marconi Perillo (PSDB/GO) durante os debates e aceita pela autora e pelo relator do projeto.

De acordo com o PL 546/07 — que prosseguiu para análise na Câmara dos Deputados —, as instituições relacionadas ficarão obrigadas a reservar, no mínimo, 50 % do total de suas vagas nos concursos de acesso aos candidatos oriundos do ensino público. No caso da educação profissional e tecnológica, será necessário que os alunos tenham cursado integralmente o ensino fundamental em escolas públicas, enquanto para as universidades será exigida a conclusão do ensino médio nos colégios da rede. Se a lei entrar em vigor, as instituições terão o prazo máximo de quatro anos para cumprir a medida.

Assim como todas as ações que suscitam debates sobre a reserva de vagas em universidades, o PL 546/07 também divide opiniões e levanta discussões acerca da inclusão acadêmica e da qualidade do ensino superior e da educação básica no Brasil. Para ponderar as principais conseqüências dessa medida e refletir sobre as temáticas que permeiam as análises do controverso sistema de cotas, o Olhar Virtual conversou com Ana Maria Monteiro, diretora da Faculdade de Educação (FE), e com Felipe Acker, professor associado do Instituto de Matemática (IM).

 

Ana Maria Monteiro
Diretora da Faculdade de Educação da UFRJ

O principal impacto que esta medida trará para as universidades está relacionada ao perfil do alunado que ingressa nas instituições de ensino superior. A ampliação do acesso para os estudantes oriundos de escolas públicas vai possibilitar o aumento do número desses alunos nas universidades, embora as estatísticas demonstrem que essas quantidades já são bastante significativas. Por isso, acredito que o impacto se dará de forma setorizada, ficando mais evidente em alguns cursos. Letras, Pedagogia, Serviço Social e História, por exemplo, são algumas graduações com grande número de alunos pertencentes a camadas mais populares, ao contrário de cursos como Ciências Econômicas, Odontologia e Medicina, geralmente mais elitizados.

É válido ressaltar que todas as medidas realizadas com o propósito de promover a inclusão educacional são extremamente importantes. Entretanto, as leis precisam ser acompanhadas de um suporte palpável. Nesse sentido, a universidade terá de dar apoio aos estudantes egressos do ensino público para que essa inclusão ocorra, de fato, nas salas de aula. Como estamos tratando do final de uma trajetória e início de outra, será necessário que as instituições de ensino superior elaborem novos projetos de orientação acadêmica, com o objetivo de permitir aos alunos o acompanhamento das atividades produzidas e exigidas pelo ambiente acadêmico. Também será importante que haja uma revisão metodológica de ensino — especialmente em unidades em que existam altos índices de reprovação e abandono —, até mesmo no sentido do desenvolvimento de uma didática mais acolhedora pelos docentes. Além disso, creio que a efetivação da medida implicará também mudanças no sistema de avaliação de estudantes nos concursos de acesso às universidades. Atualmente, o vestibular avalia o mérito dos candidatos de forma genérica, sem considerar os diversos grupos sociais e as possibilidades de acesso.

Ademais, alterações profundas no cerne da educação básica serão indispensáveis para garantir à ampliação do acesso e efetivar a inserção dos alunos na vida acadêmica, mantendo o padrão de qualidade oferecido pelas universidades federais brasileiras.

Acredito que o Projeto de Lei tem grandes chances de entrar em vigor. A aprovação da medida representará não só a vitória dos interesses de grupos que lutam por esta causa, mas também uma conseqüência decorrente das mudanças ocorridas na própria estrutura da sociedade brasileira. Por ser uma educadora, compreendo a recepção dos alunos oriundos de escolas públicas como uma questão de vontade política. Os professores não poderão considerar esses estudantes como inferiores. O preconceito precisa ser vencido, até porque, obviamente, a universidade vai receber alunos em, pelo menos, mínimas condições de ingresso no ensino superior. Claro que não haverá analfabetos nas salas, mas mesmo que existam certas diferenças entre o corpo discente, será preciso ter consciência de que a educação é capaz de transformar pessoas. Por isso, é essencial que parta dos docentes a vontade política para implementar mudanças, vencer preconceitos e, sobretudo, receber os estudantes sem paternalismos, para que o objetivo de formá-los segundo as condições exigidas pela sociedade seja alcançado.

Felipe Acker
Professor associado do Instituto de Matemática da UFRJ

Boa parte de nossa sociedade parece acreditar que o acesso ao ensino superior é algo que pode ser mais bem distribuído, “como forma de promoção da igualdade”. Esta é, creio, a base das diversas propostas de cotas nas universidades públicas. Observemos que tais propostas se dão dentro de um quadro em que todas as avaliações evidenciam a má qualidade de nosso sistema de ensino fundamental e médio, particularmente o público. Os bem intencionados proponentes da “democratização” do acesso ao ensino superior parecem considerar que os doze anos de escolaridade formal que precedem a entrada na universidade não deveriam ter um peso tão grande assim nos critérios de acesso. Talvez isto possa ser verdade em uma ou outra área (como a Política), onde a experiência de vida pode ser mais importante que a escolaridade (aproveito para me declarar, sem arrependimento, um eleitor do presidente Lula), mas não pode ser tomado como regra. A aquisição dos conhecimentos fundamentais em Matemática, por exemplo, se dá, essencialmente, na escola, e exige um bocado de tempo, do qual não temos como dispor no curso superior para “recuperar” quem teve escolaridade deficiente.

Assim, nosso país parece, já há algum tempo, adotar uma política educacional que procura ampliar fortemente o contingente de estudantes nas instituições de ensino superior, sem para isto construir os alicerces que dêem a estes mesmos estudantes o devido preparo para os estudos superiores. O resultado já é visível: a maior parte de nossas faculdades particulares forma técnicos de nível médio com diplomas de curso superior.

As pomposas solenidades de colação de grau, que há algumas décadas tinham o sentido de celebrar a entrada dos formandos no clube seleto da elite intelectual, são agora, na maioria dos casos, uma festa que perdeu aquele significado. Hoje temos cada vez mais balconistas e taxistas com curso superior. Isto é, claro, um grande avanço, do ponto de vista da elevação do nível de escolaridade da população de nosso país. No entanto, estamos levando mais quatro anos do que o que seria de se esperar para dar a estas pessoas uma formação que deveriam ter ao final do ensino médio.

A Universidade pública tem procurado manter um padrão mais próximo do que se considera, mundo afora, ensino superior. No momento atual, com as pressões para o aumento do número de vagas, somadas às propostas de cotas, podemos estar caminhando para o nivelamento com o que já se faz na maioria das instituições privadas. Dentro deste quadro, podemos prever duas mudanças significativas.

A primeira destas mudanças, que já é visível, é a transferência do patamar mínimo de escolaridade das elites intelectuais para a pós-graduação. Os concursos de acesso aos programas de mestrado já começam a tomar ares de vestibular. É possível que tenhamos, proximamente, um acirramento das divisões, ou mesmo uma ruptura, entre graduação e pós-graduação.

A segunda é ainda uma possibilidade, mas já aconteceu, nas últimas décadas, com a escola pública. Se a universalização do acesso às instituições públicas de ensino superior significar perda de qualidade, como aconteceu com o ensino fundamental e médio, teremos o efeito oposto ao que se pretende com o sistema de cotas: os ricos deixarão aos cotistas a Ilha do Fundão e pagarão caro, como hoje já pagam no ensino fundamental e médio, por cursos superiores de melhor qualidade. Neste sentido, o fator determinante para a preservação da qualidade são o salário e as condições de trabalho do professor, difíceis de manter quando o sistema cresce muito.