No dia 8 de maio desse ano, o PACS (Políticas Alternativas para o Cone Sul) realizou uma audiência pública no Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro (Sindipetro/RJ), em que foram apresentados casos de violação de direitos humanos cometidos por empresas transnacionais européias no Brasil. O evento foi uma preparação para o Tribunal dos Povos, uma espécie de tribunal de opinião, realizado em Lima, no mesmo mês, abordando, justamente, os abusos por parte dessas empresas que atuam na América Latina.
Em busca de desenvolvimento e lucro, acordos e investimentos vêm sendo feitos por multinacionais, que dirigem o processo de globalização, de modo a desrespeitar os direitos humanos das populações de países mais pobres, como os latino-americanos. No entanto, apesar de gerar reações, nada é concretizado para se pôr fim a tais práticas.
O Olhar Virtual entrevistou Ivo Lesbaupin, professor da Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ), para saber um pouco mais sobre o assunto e o peso que ele tem para o Brasil hoje em dia.
Olhar Virtual: Ao violarem os direitos humanos, as empresas multinacionais violam leis. Como isso acontece sem que elas sofram as devidas punições?
Em 1997, o governo francês – socialista, na época – se recusou, sob pressão de algumas ONGs, a aprovar um projeto de lei que estava sendo discutido longe das câmeras, sem qualquer transparência, entre os países desenvolvidos, chamado AMI (Acordo Multilateral de Investimentos). Segundo esse acordo, se por acaso empresas multinacionais estabelecidas num determinado país ferissem a legislação nacional, a lei que valeria não seria a do país, seria a do AMI. Era uma legislação absolutamente draconiana a favor das empresas multinacionais, submetendo os países onde essas multinacionais atuam à legislação internacional favorável a estas e não àqueles. Quando se tornou público que essa lei era um escândalo, houve um recuo. Ela não progrediu na época, mas várias vezes os países ricos tentaram rediscuti-la.
Paralelamente, houve a tentativa de instalar, na América Latina, a ALCA, mas, como o Brasil se posicionou contra, não foi levado adiante. Os EUA, percebendo que a ALCA não progredia, passaram a fazer acordos bilaterais, chamados TLCs (Tratados de Livre Comércio) que praticamente reproduziam a ALCA, limitada a um só país.
Esses dois processos se reforçaram. De um lado, o favorecimento das empresas multinacionais pela legislação internacional, do outro lado, o Tratado de Livre Comércio. Tudo isso vai favorecer o lado mais forte. O AMI não passou, mas, na prática, a legislação vigente favorece as multinacionais. O critério não é o dos interesses da nação, são os interesses das empresas de nível internacional. Curioso é o que vem ocorrendo nos últimos anos, deixou-se de levar em conta a autodeterminação dos povos, uma norma das relações internacionais que, desde a Segunda Guerra Mundial, era considerada fundamental. O bloco capitalista sempre denunciou o bloco socialista, pelo fato de os países desse bloco não terem autonomia. O que ocorre hoje é que a soberania e a autodeterminação de cada país não contam mais, o que conta são os interesses econômicos das empresas multinacionais. Por que essas multinacionais têm tanto poder? Porque é a “lei da selva”: o direito está do lado do mais forte. Os países menos desenvolvidos têm menos força para fazer valer seus direitos.
Olhar Virtual: Por que o governo brasileiro ignora essas violações?
Na verdade, este governo atende, fundamentalmente, aos interesses das grandes empresas. A postura normal do governo é essa: as multinacionais dispõem de caminho fácil.
Qual é a posição do governo em relação aos direitos humanos? A defesa dos direitos humanos é relativa. Basta observar como foi tratada a Comissão de Mortos e Desaparecidos, no início do governo Lula. Eu tive um encontro com o ex-presidente desta Comissão, que renunciou depois de algum tempo, João Duboc Pinaud. Ele disse que renunciou porque o governo não oferecia a mínima condição para você acessar os documentos que permitiram desenvolver a investigação e chegar aos desaparecidos políticos, ou confirmação de que estão mortos, enterrados em tais e tais lugares. Não há um compromisso efetivo do governo com a questão dos direitos humanos, isso ficou nítido na questão da Comissão.
O assassinato da Dorothy Stang é outro exemplo. Na ocasião, se fez um grande estardalhaço, e agora? Agora o mandante foi absolvido. Você pode dizer que o julgamento não foi feito pelo governo, que o governo federal não é responsável por isso, mas existe uma postura governamental que ajudaria a indicar que tipo de país é este. Agora, membros do governo protestaram, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos se posicionou e eu acho que a decisão vai ser revertida.
A grande preocupação econômica do governo atual é desenvolver a produção de etanol. O presidente roda o mundo inteiro fazendo propaganda do etanol e, lá fora, quando perguntado sobre a condição de vida dos trabalhadores na cana-de-açúcar, o presidente da República responde: “mas foi assim que os países desenvolvidos se desenvolveram. Os mineiros que trabalhavam nas minas de carvão não tinham condições de vida melhores do que têm os nossos canavieiros”. O recente relatório da Anistia Internacional denuncia as condições de vida dos canavieiros. O que faz o governo sobre isso? Nada. Trabalhadores em condições de semi-escravidão estão sendo libertados pelo Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. A maioria, nos últimos anos, estava em usinas de cana-de-açúcar, mas o governo continua investindo no etanol e oferecendo crédito sem interferir.
Minha avaliação da defesa dos direitos humanos no governo Lula, portanto, não é muito boa. Ressalva feita à Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
Olhar Virtual: Como a população vem agindo a respeito desse assunto?
Eu acho que não há conhecimento disso aqui.
A mídia faz o jogo do governo e só noticia o que interessa a ele. Então, a população não tem um posicionamento mais crítico porque ela desconhece muitos fatos. Como a população vai reagir se não tem informação? Já os movimentos sociais e os setores organizados têm reagido bem como as comunidades atingidas, mas a população não.
Olhar Virtual:Mobilizações como a do Tribunal dos Povos são válidas para a solução do problema? Elas obtêm resultados reais?
Eu assisti em Viena, em 2006, a um Tribunal dos Povos. Qual é a dificuldade? É que não tem divulgação. A gente fica sabendo pouco. Sobre esse que ocorreu em Lima saiu algum comentário no jornal, mas pouco. O Tribunal dos Povos ainda é pouco divulgado. A TV o ignora. Há uma espécie de “ditadura” da mídia, que só noticia o que lhe interessa e esconde muitos fatos à sociedade: é a ditadura do “pensamento único”. Mas como os movimentos de comunidades interessadas, certos setores da comunidade civil, como OAB, CNBB, por exemplo, tomaram posição, o assunto está se difundindo. O fato de esse acordo multilateral de investimentos (AMI) não ter sido aprovado foi puramente pressão dessas entidades organizadas, não foi um grande movimento internacional. ONGs conseguiram publicar nos jornais, pressionaram o governo socialista e este se posicionou contra.
Olhar Virtual: Há algum caso importante em que a empresa tenha sido punida?
Saiu há poucos dias uma denúncia do Ministério Público contra a Vale do Rio Doce, não me lembro bem em que estado. É difícil, no caso da Vale, porque é uma empresa que tem grande apoio midiático e do próprio governo, mas, apesar disso, o fato foi levado a público. Já em relação ao trabalho escravo, constatado em inúmeras grandes empresas agropecuárias, os trabalhadores têm sido libertados, mas as conseqüências para as empresas não aparecem. Estas empresas deveriam perder a propriedade da terra, que seria doada para o Estado, elas deveriam deixar de receber crédito. Várias delas, um ano depois, já estão recebendo crédito novamente. É a cultura da impunidade.
Olhar Virtual: Por que, em pleno século XX, a violação de direitos humanos ainda é uma prática tão comum por parte de grandes multinacionais?
Nos últimos trinta anos, a hegemonia neoliberal fez com que os direitos humanos deixassem de ser prioridade. O discurso dos governantes, dos líderes, dos grandes empresários é a favor dos direitos humanos, da democracia, mas a prática é o contrario. A implementação das políticas neoliberais supõe a violação dos direitos humanos. Os direitos humanos são falados, mas não são mais praticados. Não há exemplo mais evidente do que as recentes discussões sobre o direito à tortura – caso se trate de um “terrorista” – ou a manutenção da prisão de Guantânamo, que é uma prisão anti-direitos humanos e todo mundo sabe disso. Desde 2001, ela está funcionando desse jeito e nada acontece, eles não estão submetidos a lei internacional alguma. Isto não ocorreria vinte anos atrás, quando havia um clima favorável à defesa dos direitos humanos, até por causa do confronto com o bloco socialista. Para o bloco capitalista ter mais legitimidade, denunciava a violação dos direitos humanos feitas pelo bloco socialista e, no seu próprio campo, procurava manter as aparências. Agora, não. Como não há mais bloco socialista, não é mais necessário manter a farsa. Essas políticas neoliberais são extremamente prejudiciais aos trabalhadores, todos sabem disso, mas interessa aos grandes capitalistas e aos países desenvolvidos, então, passam por cima das leis. Eu acho que isto está ocorrendo em pleno século XXI porque, já no final do século XX, direitos humanos não eram a prioridade. A prioridade é o capital, tem que ter lucro e isso é comemorado
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