Entrelinhas

Subjetividade e Marx

 

 

Márcia Guerra

 A coletânea Karl Marx e a subjetividade humana, escrita pelo psicólogo e cientista político Eduardo Mourão Vasconcelos, é o resultado de um estudo minucioso das obras de Marx, sob a ótica da Psicologia, para desenvolver um tema há muito adiado pelos marxistas: a subjetividade humana. A obra apresenta um contexto em que as injustiças sociais e a cultura do individualismo estão ligadas à saúde mental dos indivíduos.

Em entrevista ao Olhar Virtual, o professor adjunto da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ explica as motivações e a relevância do estudo para a sociedade atual, além de detalhar o conteúdo de cada um dos três volumes da série já publicados e adiantar a abordagem dos próximos.

Olhar Virtual: O que o motivou para a realização do estudo?

Eduardo Mourão Vasconcelos: Sou militante de esquerda ligado a movimentos sociais populares desde os meus 17 anos. Tenho formação predominantemente marxista, mas também fui influenciado por uma formação e uma prática docente mais pluralista em Filosofia, Ciência Política e Psicologia. Nesta última, sempre fiquei intrigado com o debate entre o marxismo e as teorias do inconsciente.

Em 1977, dois amigos e companheiros de militância política “piraram”, não deram conta de se tratar com os recursos de tratamento usuais da saúde mental, pois achavam que seus problemas eram contradições pequeno-burguesas, e que, portanto, só a militância política iria resolvê-los. Em menos de um ano, ambos se suicidaram.

Desde então, quis entender melhor a relação entre marxismo e a subjetividade, mais particularmente com os temas da personalidade, do transtorno mental, do aparelho psíquico e do inconsciente. Gradualmente, fui constatando que essas questões constituíram problemas mais amplos no marxismo e nas experiências de socialismo real, da relação com a cultura, com a prática democrática e com a política de saúde e saúde mental.

Olhar Virtual: Em termos gerais, como foi a relação de Marx e do marxismo com os temas da subjetividade?

Eduardo Mourão Vasconcelos: Marx, na formação universitária, teve interesses literários e participou de grupos partidários da Filosofia de Hegel, leu uma gama imensa de obras filosóficas e desenvolveu  tese de doutoramento sobre Filosofia Grega. Também escreveu vários textos filosóficos, particularmente, quando ainda jovem, entre os anos 1843-1846. Nesses textos, abordou vários temas e conceitos que estão no campo da subjetividade humana. Contudo, também seus textos maduros, mais voltados para a economia política, como os Manuscritos Econômicos de 1857-8 (os Grundrisse) e o próprio O Capital, cujo primeiro volume foi publicado em 1867, também apresentam passagens significativas no campo da subjetividade. Podemos dizer que suas ideias psicológicas se centraram nos temas da percepção, da cognição (consciência) e do comportamento (atividade, práxis, trabalho).

De modo muito geral, podemos dizer que Marx, por sua crítica ao idealismo e sua ênfase na materialidade objetiva do trabalho, da práxis e consciência social, rejeitou qualquer aproximação com a ideia de aparelho psíquico e de processos inconscientes. O interessante é que ele mesmo teve sofrimentos psicossomáticos graves, o que atrasou muito sua obra e vida política nos últimos 20 anos de vida, e que ele não conseguia compreender. Depois, tivemos movimentos de idas e vindas algo limitados e parciais, com alguns equívocos significativos. Por exemplo, no período inicial da Revolução Russa, aconteceu uma aproximação breve com as ideias de Freud, mas foi logo reprimida por Lênin e pelo stalinismo, em nome da reflexologia de Pavlov e da teoria de atividade de Leontiev, na direção de um mecanicismo objetivista ou sociologista, que teve forte influência sobre os marxistas em todo o mundo.

No chamado marxismo ocidental, com destaque para a Escola de Frankfurt, houve várias tentativas de aproximação entre o marxismo e a psicanálise. Entretanto, entre os militantes, organizações e autores marxistas mais ortodoxos, essas aproximações com o tema da subjetividade ainda assustam muito e são sistematicamente rejeitadas e tachadas de conservadorismo subjetivista ou psicologismo.

Olhar Virtual: Qual a importância do estudo hoje?

Eduardo Mourão Vasconcelos: Há inúmeros aspectos que teríamos de citar para responder a esta pergunta, mas gostaria de destacar apenas alguns. Penso que há duas polarizações claras e opostas nos principais campos de estudos sobre a subjetividade, que tendem a realizar reducionismos. Uma primeira é uma forte tendência dentro de várias abordagens da psicologia, da psicanálise e da psicologia analítica, em desconsiderar o contexto econômico, social, político e cultural em que os processos subjetivos ocorrem, recaindo, portanto, no subjetivismo e psicologismo. No lado oposto, temos uma tendência ao sociologismo e politicismo, desconsiderando os diversos aspectos subjetivos individuais e coletivos da vida social e da prática profissional. Vemos isso, por exemplo, em setores mais ortodoxos da esquerda e em várias correntes de pensamento por eles influenciados, como no serviço social brasileiro, que tende a recalcar os problemas da subjetividade. No campo das políticas de saúde mental e da reforma psiquiátrica, no Brasil, fomos influenciados pela experiência italiana, na qual se destacou a liderança de Franco Basaglia, que tinha forte inspiração em Gramsci. Entretanto, penso que a abordagem de Foucault e das diversas psicanálises têm  presença mais forte hoje no Brasil, e dão uma marca, às vezes, muito idealista e voluntarista aos atores do campo, sem conseguir avaliar direito as profundas implicações da atual conjuntura política e social no campo da saúde mental. Assim, acho que a coletânea pode contribuir com o debate.

E finalmente, temos a grande questão do projeto histórico de emancipação social pelo qual lutamos. Logo após a queda do socialismo real, no final dos anos 80, esboçou-se entre os marxistas mais abertos e ventilados uma perplexidade e um início de reflexão sobre as possíveis razões da derrocada, que, às vezes, incluiu temas ligados à subjetividade. No entanto, naquele mesmo momento, em todo mundo, a luta contra as políticas neoliberais exigiu de todos nós da esquerda cerrar fileiras nas denúncias de suas mazelas e na centralidade incontornável e na potência do marxismo nessa luta. Assim, essa revisão teórica e histórica interna, apenas iniciada por alguns de seus autores mais flexíveis, acabou sofrendo adiamento. Contudo, ela é fundamental para que possamos ir mais além de nossa já conhecida capacidade de criticar o status quo capitalista, para construir positivamente, na teoria e na prática, as bases contra-hegemônicas de uma sociedade mais justa, solidária e também pluralista e democrática, desde já, e que contemple plenamente a temática da subjetividade. Considero que o meu esforço nesta coletânea é exatamente contribuir para essa retomada, no campo particular das ideias psicológicas.

Olhar Virtual: Como você enxerga a conjuntura social e política atual e a relação com a subjetividade? Como é esse cenário no Brasil atual?

Eduardo Mourão Vasconcelos: Apesar de pequenos avanços em alguns dos indicadores sociais no Brasil nos últimos anos, a tendência mais geral no mundo é de manutenção e aprofundamento dos grandes problemas coletivos. As políticas neoliberais acentuaram as mazelas econômicas, sociais e ambientais de amplas parcelas da população mundial, o que tem forte impacto na saúde mental da população. Por exemplo, pobreza, altas taxas de desemprego e de trabalho precário e informal difundem quadros de desamparo e depressão, de desarticulação da perspectiva de futuro através da dedicação à escola, ao trabalho e à carreira pessoal, e da esperança dos filhos terem uma vida melhor por meio do investimento de longo prazo na educação, na formação ética e capacitação para o trabalho. Em paralelo, exacerba-se a cultura do individualismo e das formas mais frívolas de sociabilidade, consumismo, narcisismo e simulacros de sonhos, cujo símbolo maior é o shoping center, convivendo lado a lado com as formas mais agudas e desumanas de negligência e exclusão presentes nas próprias ruas das cidades. Isso gera aumento da criminalidade, do tráfico e do abuso de drogas, das milícias e da violência social, que, por sua vez, aumenta a incidência de fobias, estresse pós-traumático, depressão etc. No âmbito das famílias, os provedores têm vínculos cada vez mais voláteis e divididos entre longas jornadas de trabalho externo e os afazeres domésticos, e se apresentam cada vez mais esgotados e indisponíveis para as exigências do processo de socialização real e psíquica de nossas crianças e adolescentes, estimulando os processos delinquenciais, quando não gera diretamente mais violência ou negligência. Na relação com o Estado, o capitalismo contemporâneo induz um enorme “desinvestimento” em políticas de seguridade social, educação e saúde mental. Não tenho dúvidas de que as contribuições do marxismo são fundamentais para compreender tais processos, em diálogos inter-teóricos com outras abordagens engajadas acerca da subjetividade.

Editora: Editora Hucitec
Formato: 14 x 21 cm
Páginas: 204
Ano: 2010
Preço: R$ 30,00 por volume

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