As ações afirmativas de cunho racial, representadas, principalmente, pelo Estatuto da Igualdade Racial (PL 3198/2000), que propõe uma série de medidas de defesa dos direitos daqueles que sofrem preconceitos em função da sua cor, e pela lei de cotas (PL 73/1999), que institui a reserva de vagas para negros e estudantes de escolas públicas nas universidades, apesar de ainda estarem em tramitação no Congresso Nacional, provocam polêmica em todos os âmbitos da sociedade. Na universidade, inclusive.
No próximo dia 12 de junho, será lançado o livro Divisões Perigosas — Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo, organizado por pesquisadores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS). O impresso questiona a validade das ações em curso no país ao mesmo tempo em que procura refletir sobre suas as potenciais consequências.
As idéias contidas no livro, no entanto, não são unanimidade na UFRJ. Contrariando os artigos da obra, alguns pesquisadores da universidade garantem que as políticas raciais, ao reconhecerem a correlação evidente entre pobreza e cor, podem combater as desigualdades sociais no Brasil, sem acarretar o ódio racial entre negros e brancos.
Giuseppe Cocco, professor da Escola de Serviço Social (ESS), escreveu, em parceria com o filósofo italiano Antônio Negri, o livro Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina Globalizada, no qual analisa também a questão das políticas afirmativas. De acordo com o pesquisador, integrante da Rede Universidade Nômade, grupo de acadêmicos que, entre outras coisas, defende as cotas raciais nas Instituições de Ensino Superior, a tão apregoada idéia de que o Brasil é uma nação mestiça, marcada pela miscigenação histórica de raças e etnias, tenta encobrir a realidade de pobreza em que vivem muitos negros, além de deturpar a sóbria interpretação da concentração de renda no país. Confira abaixo os argumentos do docente.
“Ninguém pode negar que, no Brasil, há uma relação entre ser pobre e ser negro. Quanto mais pobres, mais negros. Não manda porque é branco, mas quem manda é branco. É hipocrisia e cinismo afirmar que o preconceito é social. O preconceito existe em todas as direções. O racismo não é uma relação abstrata. A inferiorização das pessoas por causa da cor é ligada a uma dinâmica da exploração, ou seja, tem um viés material. Não há contradição entre o fato de que haja preconceito social e de que tenho embutido nisso uma dinâmica racial.
Muitos insistem em dizer que uma política de ação afirmativa no Brasil é impossível, porque, na verdade, o Brasil é um país mestiço, em que não há branco ou negro, onde todos são pardos. Quando, na verdade, sabemos muito bem quem é branco. Essa idéia de que somos todos pardos não denota uma mistura. A mistura implica todas as cores. A redução da mistura ao fato de que seríamos um conjunto cinza é uma operação do poder, que busca construir a idéia de povo, de nação em nome da qual os interesses de alguns possam ser aceitos como se fossem de todos.
Esse discurso do conjunto cinza nega a diferença. Pega a potência da miscigenação e a reduz ao nada. Em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, por exemplo, a exploração do branco sobre o negro se transforma em uma grande harmonia. Com os anos, a miscigenação virou valor nacional; tornou-se comum o discurso de que somos todos pardos, temos todos um pé na cozinha.
A ação afirmativa é fundamental, não porque vai colocar brancos contra negros, mas porque ela mistura de verdade todos os níveis. Ela serve para eu chegar a um hospital e não saber quem é enfermeiro e quem é médico apenas pela cor. A ação afirmativa é uma dinâmica que amplificará a estrutura em todos os níveis e com isso poderá combater um dos elementos da reprodução da desigualdade social no Brasil, que é o seu caráter racial.”