As ditaduras militares, que impuseram repressão e violência aos cidadãos latino-americanos por longos anos, foram substituídas por governos democráticos, a partir, principalmente, da década de 80. Desde então, grande parte dos países da América Latina escolhe seus representantes através de eleições gerais e dispõe de uma Constituição Federal para pautar as decisões políticas.
A democracia política, contrariando a expectativa dos movimentos de resistência aos regimes autoritários, não promoveu, no entanto, igualdade econômica entre os diversos extratos sociais da região. Estudos recentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) mostram que, embora os índices de pobreza estejam em declínio, 40% da população latino-americana – o que representa cerca de 210 milhões de pessoas – é pobre. Ademais, ainda predominam na região a enorme concentração de renda e a desigualdade de oportunidades.
A América Latina depara-se então com o desafio de superar as contradições internas e estender a democracia para além dos limites da forma de organização política, sob pena de tornar questionável o próprio conceito de regime democrático, tão veementemente idealizado durante os anos de coerção. Afinal, é possível haver uma democracia desvinculada de justiça social?
Diante da importância do debate acerca do tema, o Olhar Virtual convidou José Ribas, professor da Faculdade de Direito (FD), e Marcelo Paixão, pesquisador do Instituto de Economia (IE), para refletirem sobre a questão. Confira abaixo a opinião dos docentes.
“A cidadania foi ampliada eleitoralmente, portanto nós temos uma democracia formal. Temos uma ordem democrática, sem dispormos, no entanto, de um regime democrático. Existe uma visão clássica que prega que a questão dos direitos civis deve anteceder a dos direitos sociais; de acordo com ela, através de uma mera incorporação, em grande parte, eleitoral, nós alcançaríamos a igualdade econômica.
Houve, ao longo desses 20 anos de transição para o regime democrático, avanços nesse sentido, mas eles não foram suficientemente velozes. Por isso, prefiro concordar com a corrente que defende que devemos encontrar saídas para a igualdade econômica para então alcançarmos um regime realmente democrático.
Pela primeira vez, estamos assistindo à ascensão dos partidos de esquerda, através de um processo democrático, ao poder. No entanto, devo sublinhar que essa esquerda é uma esquerda que negocia contratos de exploração de gás, que faz políticas assistencialistas, que não muda a política econômica, ou seja, ela é ainda muito pragmática.
Diante disso, acredito que a mudança na ordem econômica passa, antes de tudo, por uma mudança da estrutura internacional e esta, por sua vez, implica um diálogo sul-sul, no qual os países do Sul conversariam e tentariam propor uma agenda própria aos países do Norte rico. Contudo, reside aí uma dificuldade, pois esse diálogo englobaria a Índia e a China, possíveis potências do século XXI, cujos interesses podem não ser os mesmos que os dos demais países do potencial bloco.”
“Mesmo que a democracia atual seja para muitos apenas uma abstração, ela faz diferença. Bem ou mal, ela beneficia setores que tendem a ficar à margem. O ciclo de redemocratização que a América Latina viveu teve um papel positivo para a manutenção de uma certa saúde do tecido social.
A assimetria de condições econômicas, entretanto, enfraquece a capacidade de verbalização da demanda de determinados segmentos da sociedade; o comprometimento desses grupos de se fazerem visíveis no espaço público acaba afrontando um dos princípios das sociedades democráticas: a capacidade de um determinado grupo de se fazer representar. Eu posso ter direito a voto, mas se a democracia se restringe ao meu direito de votar, é evidente que essa ela é muito limitada.
Ainda assim, a democracia política cria a possibilidade de igualdade econômica. Tivemos muitos avanços de movimentos sociais, tradicionalmente discriminados, como o movimento da mulher, dos negros, os sem-terra, por conta do movimento democrático. O problema é saber como poderemos fazer com que essa aparição no espaço público se converta em transferência de poder e de recursos econômicos.
Acredito que devemos construir consensos e maiorias pró-reformas sociais, e isso, necessariamente, tem que ocorrer dentro de processos democráticos. Devemos mobilizar o poder, a mídia, os setores das forças armadas para essa agenda, com o objetivo de construir maiorias. Para isso acontecer, é imprescindível a manutenção do regime democrático.”