Olho no Olho

O feminismo quarenta anos depois

Monike Mar – AgN/Praia Vermelha

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Mulheres em praça pública incendiando seus sutiãs é sem dúvida um forte símbolo do movimento feminista. Há quarenta anos as discriminações sofridas as impulsionaram a reivindicar mais espaço social, político e econômico, e a queima de sutiãs (ou bra-burning) é apenas um aspecto marcante. Desde então, quebraram-se alguns tabus, principalmente em relação à sexualidade, somado à busca por nivelamentos salariais em comparação ao ganho masculino no mercado de trabalho. Definições clássicas do feminismo o restringem a lutas que tensionam a relação entre os sexos. Porém, vemos hoje uma nova configuração de movimentos feministas com organizações em prol dos direitos das mulheres, contrapondo-se a visões negativas a respeito do feminismo, com a afirmação de que foi derrotado. A herança de adeptas do bra-burning é perceptível a partir do momento em que mulheres passam a ocupar posições antes restritas aos homens.

Hoje, com exceção da Oceania, em todos os continentes há pelo menos uma mulher na presidência: Michelle Bachelet, no Chile, Cristina Kirchner, na Argentina, Pratibha Patil, na Índia, Tarja Halonen, na Finlândia e Ellen Johnson Sirleaf, na Libéria; ainda temos mulheres de destaque internacional, como a secretária de Estado dos EUA, Condoleeza Rice, a chefe de Estado das Filipinas, Gloria Arroyo e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. Essas mulheres são apenas alguns exemplos dos resultados de lutas contra a hegemonia masculina nos cargos políticos. No âmbito social, as mulheres obtiveram sucessos destacáveis como liberdade sexual e sexo independente de casamento, divórcio, participação no mercado de trabalho, entre outros avanços que as fazem desprender-se da imagem exclusiva de mãe e esposa, como nos séculos passados. Os tradicionalismos ainda arraigados na sociedade atualmente desfavorecem a ascensão feminina contra essa imagem, sendo este, então, um dos maiores desafios do feminismo hoje, mesmo que os movimentos ou organizações de mulheres e homens recebam outras denominações.

Para nos aprofundarmos no debate e esclarecermos a questão da permanência de movimentos feministas na atualidade, o Olhar Virtual ouviu Liv Sovik, doutora em Ciências Econômicas e professora da Escola de Comunicação da UFRJ, e Joel Birman, professor do Instituto de Psicologia da UFRJ, especializado em Psicanálise e doutor em Filosofia Política.

 

Joel Birman
Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ

O movimento feminista está hoje numa outra etapa. Nos anos 50 e 60, as mulheres assumiam uma posição passiva. Hoje rebelaram-se contra aquela redução à posição de esposa e mãe, rasgando sutiãs junto com mais uma série de símbolos nessa época. O movimento feminista não foi derrotado, exatamente porque muitos elementos fundamentais de sua plataforma foram efetivamente incorporados na sociedade contemporânea. O primeiro elemento é a liberdade sexual: o fato de a sexualidade não estar ligada ao casamento, necessariamente, significa que as mulheres podem desde então ter muito mais liberdade na experiência sexual, exercendo a sexualidade desde cedo. O segundo elemento refere-se a uma separação da dimensão erótica da sexualidade sem que isso seja atrelado a um compromisso matrimonial, que era uma coisa ligada à família burguesa ou à tradição do patriarcado comum. Exerce-se, então, o sexo pelo prazer, pelo exercício do desejo, facilitado pelo advento dos métodos anticoncepcionais seguros, desde a pílula até o DIU e outros dispositivos. Outro elemento é a própria perda do lugar quase sagrado ocupado pelo casamento, um ganho do movimento feminista. Se os parceiros oferecem condições para que as mulheres possam exercer a sua função social ou desenvolver o seu projeto existencial, o divórcio torna-se muito mais acessível, como nunca foi antes. No Brasil, o desquite colocava a mulher numa posição muito desonrada socialmente. Reverter o processo foi outro ganho importante. Além disso, antigamente era inimaginável que mulheres ascendessem a níveis de educação universitária e pós-universitária. Elas tinham uma formação básica para poderem exercer as virtudes maternais e domésticas. Hoje, elas têm acesso a uma educação superior. Atualmente, além de mães, elas são profissionais, disputam lugares no mercado de trabalho, exercem postos em diferentes níveis da sociedade. Enfim, as propostas fundamentais do movimento feminista foram, de alguma maneira, implementadas. Nesse sentido, o feminismo não é um movimento derrotado, porque algumas das bandeiras foram efetivamente transformadas em práticas sociais correntes desde os anos 60. Os ideais são sustentados por movimentos e, se esses ideais continuam vivos, significa que o movimento enquanto tal continua fundamentando os acontecimentos. Se houvesse uma nova ética antipatriarcal, antimonogâmica, antilibertária, não teríamos estas possibilidades hoje quase naturalizadas na nossa contemporaneidade.

Ainda sustentados por organizações feministas, faz parte de um conjunto de novos desafios a demanda da representatividade das mulheres na sociedade política, na sociedade civil e no mercado de trabalho. Socialmente falando, é evidente que as mulheres ainda não conseguiram ultrapassar certos patamares. Há a queixa permanente no Brasil de que as mulheres não têm a mesma representação no plano das organizações políticas e, no mercado de trabalho, os mesmos salários que os homens. Há sempre uma defasagem em relação ao salário masculino, superior aos salários femininos mesmo que ambos exerçam as mesmas funções. Então, ainda existe um certo caminho a percorrer para que haja igualitarismo de gênero. Os preconceitos advindos da tradição patriarcal estão muito incorporados no imaginário social, no psiquismo das pessoas. Essa "superioridade" que é atribuída ao homem em relação às mulheres aparece em termos tanto da representação política quanto dos salários no mercado de trabalho.

Mesmo em longo prazo, o papel do movimento hoje é um pouco dissolver esses preconceitos, pois há valores patriarcais que precisam ser enfrentados. Uma das funções do movimento feminista hoje é dissolver esses obstáculos persistentes, embora de uma forma mais leve do que nos anos 60 evidentemente. Portanto, estamos diante de novos objetivos: representação política, igualitarismo sexual, proteção ao assédio sexual ou garantia de equiparação salarial.

Não sei se hoje teríamos ícones do movimento feminista, mas é evidente que a mulher que se destaca em algum campo da atividade artística, científica, política e econômica acaba se transformando em um. Temos uma série de mulheres ocupando o primeiro escalão de governos importantes, do ponto de vista internacional. Na América Latina, nós temos mulheres na presidência do Chile e da Argentina. E na Alemanha, uma primeira ministra muito respeitada. Temos, já hoje, uma responsabilidade política outorgada às mulheres; até mesmo porque os homens decepcionaram tanto no campo da governabilidade que as pessoas estão começando a apostar mais nas mulheres. Então, qualquer pessoa que se destaca do ponto de vista público acaba se transformando numa espécie de ícone, como foi a Princesa Diana, como foi Madonna num determinado período. São símbolos de alguma liberdade, um certo bastião libertário relacionado a um poder social.

 

Liv Sovik
Professora da Escola de Comunicação da UFRJ

O feminismo teve um papel muito importante nos diversos momentos da História. O mais recente foi nos anos 60 e 70. Por isso, não se pode pensar que o passado marcado por conquistas é nulo, sem impactos. Logicamente, ainda há problemas culturais, levaram anos para se enraizar, como os desníveis salariais e outros desmerecimentos produtos da presunção de que as mulheres não precisam ser levadas a sério. É uma pena que a ridicularização da mulher seja tão constante, porque há uma atenção excessiva à aparência, com arregimentações, comentários e expectativas de sensualidade não esperadas dos homens. Nesse último caso, também existe a opressão de uma mulher não sedutora, um problema cultural. O feminismo tentou enfrentar isso e conseguiu em poucos lugares.

Atualmente há a dificuldade de o feminismo lidar com a igualdade entre os sexos, estamos diante de uma multiplicidade de possibilidades, tanto de ser mulher quanto de ser homem. Porém, essa multiplicidade feminina é muito reduzida pelo machismo, que acaba convencionando duas ou três formas de ser mulher. Nesse sentido, hoje, o feminismo pode contribuir em romper a posição subalterna que a mulher ocupa na sociedade, para ultrapassar as hierarquias sociais. Na sociedade, as hierarquias estão muito fortes. Para romper com elas, e também com os tradicionalismos e as simbologias, são necessárias campanhas persistentes, o que, ao meu ver, demanda atitudes diferentes de simplesmente quebrar tabus.

Embora saibamos disso, as reivindicações não estão muito claras, não estão muito definidas para pensarmos em movimentos "feministas" efetivamente. Outro problema é a forma pejorativa com que o feminismo é tachado. Ser feminista não é o direito de qualquer mulher, criou-se um imaginário no qual as feministas são ativistas ou acadêmicas. Esse pensamento faz o próprio feminismo recuar, até porque, além disso, ser chamada de feminista, hoje, é evocar para si desprezos. Há esse problema do rechaço geral com a palavra: feminismo; pois, inclusive, existe uma série de movimentos de mulheres que fazem trabalhos sociais e que lutam contra preconceitos, mas que talvez não gostassem do rótulo de feministas, propriamente. O movimento feminista conseguiu adquirir uma espécie de fama de amargurado.

Agora pensemos nos opositores do feminismo. Certamente, são aqueles ainda fortemente ligados a valores tradicionalistas. Estes nem sempre percebem o quanto são aliados da igreja reacionária, de valores religiosos extremamente tradicionais. Ativistas tentaram avançar contra isso mas, se podemos falar em derrotas, temos então uma que perpassa esse problema da Igreja. Entretanto, não se faz a denúncia de que o discurso religioso é machista, porque quem tem preconceito contra o feminismo ou contra mulheres em geral não se vê com essa aliança.

Por outro lado, são perceptíveis os resultados de lutas anteriores, marcas deixadas pelos movimentos do passado, tais como o maior acesso feminino ao poder político. Temos o exemplo de Hillary Clinton, preterida para a candidatura à presidência dos Estados Unidos. Isso causou revolta entre mulheres da geração da ex-esposa de Bill Clinton, porque, para elas, Hillary representava a reivindicação da igualdade, uma possibilidade de poder, a iminência de disputar a presidência de um dos países mais poderosos do mundo.

No Brasil, as organizações feministas que funcionam muito bem são orientadas para a área das políticas sociais em busca dos direitos das mulheres. Há várias organizações não governamentais que avançaram, que ajudaram a construir uma constituição mais justa. Mesmo assim, não podemos nos esquecer que o momento é de recuo para o feminismo porque estamos todos recuados dentro de culturas. Como os tabus, a cultura é fortemente definidora da posição da mulher na sociedade.