Entrelinhas

Violência e medo

Priscilla Prestes - AgN/CT

capa do livro

Marcelo Lopes de Souza, professor da UFRJ e ganhador do prêmio Jabuti, trabalha há mais de vinte anos com problemas urbanos. O complexo temático violência e (in)segurança pública é um de seus assuntos prediletos. Ele busca, geralmente, integrar esse assunto com dois outros temas, também cultivados desde os anos 80 e 90, que costumam ser tratados separadamente: o papel e as práticas espaciais dos movimentos sociais emancipatórios e as práticas de planejamento urbano promovidas pelo Estado.

No que se refere à violência, suas pesquisas procuram discutir como a criminalidade violenta e o medo contribuem para sabotar a possibilidade de construção de uma sociedade com cidades mais justas e democráticas.

Como Marcelo argumenta, por um lado a violência não tem nada de novo, existe desde o surgimento das cidades; por outro lado, o medo e o risco de sofrer agressões e ser vítima da violência é, hoje em dia, particularmente forte. A criminalidade violenta e a sua percepção determinam o comportamento e o cotidiano de pessoas, como, por exemplo, através da decisão dos moradores de certas cidades de migrar a fim de fugir da violência, do receio de muitas empresas em realizarem novos investimentos em determinadas cidades, do destaque dado pelos meios de comunicação e da intensidade com que esse tema aparece nas conversas no dia-a-dia.

Diante dessa realidade, Marcelo apresenta seu mais recente livro, Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana, uma análise da forma pela qual o medo generalizado vai se convertendo em um formidável fator de (re)estruturação do espaço e da vida urbanos. Leia a entrevista com o pesquisador na íntegra.

Olhar Virtual: Qual o principal objetivo de Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana?

Marcelo: Busco chamar a atenção para dois grandes problemas: o primeiro é o de que vivemos uma situação delicadíssima, na qual o modelo social capitalista produz maciça e crescentemente “fatores de estímulo” a diversos tipos de violência (não me refiro somente a desigualdades materiais, que se associam muitas vezes a sentimentos de revolta e frustração por parte daqueles que não podem consumir, mas também ao estresse e a psicopatologias diversas, à desregulamentação do sistema financeiro e às facilidades para a “lavagem” de “dinheiro sujo”); por outro lado, esse modelo social, ao mesmo tempo que cria esses fatores, se mostra extremamente incapaz de enfrentá-los. A ciranda da violência tende, no geral, a se agravar – a principal resposta do Estado, das elites e da classe média, diante disso, é uma mistura de “contenção social” (por meio da repressão ou de medidas de “inclusão” puramente paliativas) e escapismo (“condomínios exclusivos” etc.).

O segundo problema é o fato de que o mundo acadêmico precisa superar alguns gargalos, caso queira oferecer uma contribuição que vá além de diagnósticos muito parciais e de “terapias” bastante incompletas. Em meu livro, procuro articular preocupações e campos temáticos que, via de regra, se acham desarticulados, ignorando-se mutuamente: por razões de especialização disciplinar e, às vezes, por motivos de natureza ideológica, quem trabalha com “segurança pública” geralmente não se ocupa de movimentos sociais ou planejamento urbano, prefere encarar o desafio da violência exclusivamente como uma tarefa para o aparelho de Estado, privilegiando um receituário de tipo institucional, que vai do aprimoramento da polícia à reforma do sistema penal e prisional. Tento mostrar que tanto o diagnóstico quanto as propostas de solução precisam estar mais atentas para a realidade, que é muito mais complexa do que a maior parte das contribuições acadêmicas costuma sugerir.

Olhar Virtual: Por que o termo Fobópole?

Marcelo: “Fobópole” é o resultado da combinação de dois elementos de composição, derivados das palavras gregas phobos, que quer dizer “medo”, e polis, que significa “cidade”. Uma “fobópole” é uma cidade na qual o medo e a percepção do crescente risco, no que se refere à segurança pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente nas conversas, nos noticiários da grande imprensa etc. Além de se relacionar com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor, levados a efeito pelo Estado ou até mesmo pela sociedade civil.

A “fobopolização”, a urbanização marcada pelo medo, pode ser muito bem observada em várias cidades e metrópoles da chamada semiperiferia, como na Cidade do México, no Rio de Janeiro, em São Paulo, e Joanesburgo, mas é um fenômeno que se inscreve em escala planetária. Muito embora cada país e cada cidade tenha suas especificidades por razões de trajetória histórica, econômica e cultural, não se trata de algo restrito a somente alguns países. Note-se que, mesmo em Los Angeles e em outras tantas cidades do EUA, ou mesmo nos arredores de Paris, violência e medo fazem parte do cotidiano.

Olhar Virtual: Como a violência, o medo e as políticas públicas são atualmente discutidos no país?

Marcelo: Como eu já disse, o debate acadêmico apresenta várias fragilidades. Vou dar alguns exemplos de “(auto)limitação do campo de análise”.
Há, por exemplo, aqueles que eu chamo de “redistributivistas”: esses explicam a problemática da insegurança pública e da violência quase que exclusivamente sob a ótica econômico-social. Eles se concentram nas desigualdades materiais e na privação, e de tal modo que, muitas vezes, o que se tem é uma visão linear e determinista das relações entre a pobreza e a criminalidade violenta. Ora, não é assim que as coisas se passam; não se pode ignorar o papel de “mediação” exercido por instâncias de natureza cultural-simbólica e institucional. Se imaginarmos que existe uma relação linear entre pobreza e criminalidade, por exemplo, não conseguiríamos explicar a razão de, por exemplo, a violência em Calcutá ser muito menor do que a verificada em Vitória ou no Rio de Janeiro, ao passo que a pobreza é, lá, muito maior…

Em oposição aos “redistributivistas” temos os “institucionalistas”, que fazem o inverso: para eles, o que é relevante, tanto para entender como para enfrentar o problema, é considerar o desempenho das instituições policiais, do Judiciário, do sistema prisional etc. Muitos chegam ao ponto de disparar, sem qualquer inibição, observações peremptórias e completamente desprovidas de rigor e sutileza, como “não há nenhuma relação entre pobreza e criminalidade”.

Há, por fim, o grupo que chamo de os “culturalistas”, que enfatiza, em seu diagnóstico, questões de ordem cultural-simbólica, tais como “crise de valores”, “dissolução da família” etc.

Cada um desses três grandes grupos (e que, internamente, abrigam correntes teóricas menos ou mais diferentes) toca em problemas importantes, mas comete o grave erro de “absolutizar” uma parte da explicação e minimizar ou mesmo desqualificar outras preocupações. Intelectual e praticamente, um dos desafios reside em integrar explicações sem que, no entanto, se descambe para uma “salada”, para um ecletismo irresponsável e superficial.

Olhar Virtual: Hoje em dia, nas pesquisas de opinião pública, muitas vezes o problema da insegurança pública aparece como mais importante ou tão importante quanto, por exemplo, o do desemprego. De que forma a mídia e a sua linguagem contribuem para a “espetacularização” do crime e da violência, principalmente nas grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo?

Marcelo: É preciso evitar o simplismo de achar que a mídia simplesmente “fabrica” a violência. Ela, muitas vezes, amplia, distorce, filtra, seleciona e deforma, mas faz isso a partir de um material fornecido pela própria realidade objetiva. O problema é que, como se discute há muitos anos, existe uma diferença entre as taxas objetivas de crimes violentos, de um lado, e a percepção de insegurança, por outro. Muitas vezes há um certo “descompasso”, pois o sentimento de insegurança pode crescer até bem mais rapidamente que o aumento real de casos de criminalidade violenta, e aí o papel da mídia, ampliando, simplificando e distorcendo, fica evidente.

Ocorre que o comportamento das pessoas é condicionado pela maneira como a realidade é percebida por elas, e não por aquilo que a realidade “é”, independentemente de sua percepção… (Lembremos que, para a sociedade, a realidade é sempre uma realidade também construída intersubjetivamente, e não somente “objetiva”.) A decisão de mudar-se para um “condomínio exclusivo” ou de fugir para o interior é influenciada pelo “clima social”, o qual é modelado pelos grandes meios de comunicação. O fato de haver uma hiperconcentração de meios de comunicação no Rio de Janeiro e em São Paulo favorece uma exposição desproporcional do que ocorre nessas cidades, em especial no Rio de Janeiro. Quantos brasileiros sabem que as taxas de homicídios foram, em Recife, maiores do que as taxas do Rio e de São Paulo, nas últimas décadas? Ou quantos sabem que até mesmo Belo Horizonte e Vitória possuem taxas de homicídios que, recentemente, já chegaram a ultrapassar aquelas das duas maiores cidades brasileiras?

É claro que, no que se refere ao Rio de Janeiro, outro fator que colabora para a hiperexposição da cidade é o próprio padrão de segregação residencial. No Rio, a classe média que mora na Zona Sul escuta tiroteios e sofre constantemente com balas perdidas, como recentemente aconteceu durante a “guerra” pelo controle dos morros da Babilônia e do Chapéu Mangueira, no Leme. Em São Paulo, por exemplo, há uma outra situação, porque a pobreza lá está muito mais concentrada na periferia, de maneira que certas coisas só se tornam mais visíveis para a classe média através de episódios como as ondas de ataques pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) que afetaram inclusive o Centro, perto da classe média.

É preciso compreender que a mídia não “amplia”, “simplifica” e “deforma” somente por incompetência e ignorância, muito embora isso também seja um fator a ser considerado. É preciso voltar à questão anterior, a respeito da responsabilidade do modelo social capitalista, e entender que estamos falando de empresas de comunicação que alimentam e são alimentadas por um poderoso “mercado da informação”. Informações sensacionalistas e simplificadas “vendem bem”; análises mais profundas e críticas, muitas vezes, “não vendem tão bem”, só atingem uma parcela pequena dos leitores, ouvintes ou espectadores  -  uma parcela mais exigente e ainda não embrutecida. Um crime que atinge uma pessoa ou família de classe média tem uma repercussão muito maior que um crime contra uma pessoa ou uma família pobre -  e é nas áreas residenciais pobres, nas favelas e periferias, que mais se mata e se morre, nas mãos de criminosos comuns, da polícia ou de grupos de extermínio.

Temos, ao lado do “mercado da informação” e em estreita conexão com ele, o “mercado da segurança” (que lucra produzindo armas, blindagem em carros, “condomínios exclusivos”) e, finalmente, o sistema político-eleitoral, em que candidatos cada vez mais exploram o medo com o objetivo de arregimentar eleitores  -  seja o medo do terrorismo, como nos EUA, seja o medo da criminalidade violenta ordinária, como no Brasil, no México etc. A sinergia produzida pela interação do “mercado da informação” com o “mercado da segurança” e o sistema político-eleitoral tem, cada vez mais, estimulado a insegurança e mesmo a violência concreta, em vez de colaborar para superá-las.

Olhar Virtual: Como você caracteriza as medidas tomadas pelo Estado?

Marcelo: Eu diria que são insuficientes e parciais; não raro, contribuem antes para agravar os problemas do que para superá-los. É claro que as ações do Estado não se restringem apenas a medidas repressivas; tem havido, mesmo no Brasil, aqui e ali, nos últimos anos, alguns avanços, no sentido de dar prioridade a medidas de tipo “preventivo”, como o chamado “policiamento comunitário”. No entanto, além da falta de coerência com que coisas tais como “policiamento comunitário” são muitas vezes implementadas, há o fato de que a “prevenção” é, antes de mais nada, pensada em termos institucionais, sejam policiais ou penais (melhorar o desempenho da polícia, do Judiciário etc.). Ora, isso é o que eu denominei “estratégia de contenção social”, a qual até pode colaborar para uma certa “estabilidade sociopolítica”, para o bem de moradores aquinhoados e investidores, mas não muito mais do que isso: ou seja, pode-se até garantir, pela via da intimidação, da disciplina e do controle, uma diminuição dos níveis de violência manifesta, mas sem eliminar os fatores que fazem com que a violência latente permaneça e se amplie. Isso é, no mínimo, perverso, porque, na realidade, caso a combinação de repressão e “prevenção” tenha certa eficácia, pode-se até conseguir um certo “apaziguamento” aparente, mas ao preço de reprimir demandas legítimas, de alienar ainda mais as pessoas e de adiar a explosão da “bomba-relógio” com a qual temos de conviver.

Há, também, “estratégias de contenção” do tipo light… Coisas como medidas compensatórias chamadas de “inclusivas”, voltadas para a “inclusão” por meio do esporte ou da música. Não tenho nada contra políticas públicas que busquem oferecer oportunidades culturais e de lazer aos pobres, especialmente as jovens pobres das favelas e periferias. No entanto, restringir-se a ações no campo do esporte e da arte, sem que isso esteja vinculado a debates e ações profundos e consistentes no que se refere à ampliação da consciência de direitos e à geração de oportunidades de geração e melhoria substanciais da renda, significa, a meu ver, cometer uma empulhação. Não adianta propor “vamos tirar os meninos do tráfico” sem que sejam inteligentemente discutidas as alternativas materiais que podem ser oferecidas. Corremos o risco de produzir propostas simpáticas, porém inócuas, propostas extremamente limitadas em seu alcance e que são, no frigir dos ovos, pouco mais que “manobras diversionistas”.

Olhar Virtual: Como o capitalismo contribui para reproduzir as frustrações e a agressividade da população?

Marcelo: De muitas maneiras. O capitalismo contemporâneo, cada vez mais, gera em todo mundo expectativas de consumo, sendo que, por outro lado, apenas uma pequena parcela, em um país como o nosso, poderá satisfazer essas expectativas de consumo por meios legais, no mercado. Se você tem um sistema que retroalimenta incessantemente um imaginário segundo o qual “ser” é “ter”, e que para você “ser” é necessário, acima de tudo, que você “tenha”, bombardeando os indivíduos com necessidades reais ou pseudo-necessidades de ter tais e tais produtos, é inevitável que muitos façam o que estiver ao seu alcance para satisfazer essas necessidades, sejam elas menos ou mais “básicas”. Isso nos remete à questão de que o problema não se vincula ao capitalismo, estreitamente, apenas como um “modo de produção”, mas sim como um modelo social e como um imaginário. A agressividade das pessoas - que obviamente não se limita aos pobres! - é estimulada pelos modos e ritmos de vida estressantes, pelos entretenimentos estupidificantes, pela sensação de que nem todos são, na prática, iguais perante a lei (refiro-me à síndrome do “você sabe com quem está falando?” e ao tratamento desigual entre ricos e pobres no que se refere à polícia e ao sistema penal)…
Quando argumento, em meu livro, que o capitalismo contemporâneo é, ele mesmo, “criminógeno”, não estou reduzindo a explicação aos fatores econômicos de per se ou, contraditoriamente, dando razão aos “redistributivistas”. As múltiplas e complexas conexões entre economia, política e cultura precisam ser enxergadas, inclusive no que se refere à sua dimensão espacial ou geográfica, se quisermos ir além das interpretações simplistas com as quais esbarramos o tempo todo.

* Diante dos equívocos editoriais verificados na redação da matéria Violência e medo, publicada no Olhar Virtual do dia 20 de maio de 2008, a equipe do boletim achou por bem republicar a reportagem com os ajustes necessários para a completa elucidação do assunto proposto e para a melhor compreensão do público leitor.