Os admiradores mais entusiasmados de Sigmund Freud sabem que um dos princípios básicos criados pelo “pai da Psicanálise” foi o da pulsão de morte. Para o pensador austríaco, todo ser humano possui uma espécie de desejo inconsciente de morte, o que explicaria a agressividade e o potencial de destruição humanos.
O que poucos sabem, entretanto, é que esse conceito não é consenso entre os estudiosos sucessores de Freud. Muitas vezes, ele é negado e até descartado. O psicanalista inglês Donald Winnicott, por exemplo, dedicou parte de seus esforços para invalidar a pulsão de morte, por acreditar que essa definição não traz qualquer benefício à prática clínica.
Na tentativa de refletir sobre o conceito, André Martins, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, escreveu Pulsão de morte?. O título questionador evidencia o caráter de contestação da obra, lançada no último dia 17 de março, na livraria Travessa, pela Editora UFRJ.
No livro, André dialoga com Freud, Winnicott e outros pensadores, tais como Spinoza, Nietzsche e Deleuze, para mostrar que “a agressividade humana pode ser compreendida muito melhor por uma teoria dos afetos do que pelo conceito de pulsão de morte”. Em entrevista ao Olhar Virtual, Martins explica como Freud relaciona a pulsão de morte ao instinto humano violento e conta como esse conceito foi sendo derrubado por pensadores posteriores a ele. Confira!
Olhar Virtual: A pulsão de morte, em Freud, pode ser entendida como um “desejo de morte”?
André Martins: A pulsão de morte poderia ser entendida como sendo, para Freud, um desejo inconsciente de morte. Mas isso porque ele a concebe como uma tendência de todo ser vivo a um retorno pulsional a um estado anterior, que seria o da não existência. Ele considera que esta tendência explicaria o fenômeno de nossa agressividade. Freud, contudo, não explica, ao conceber uma pulsão para a morte, de onde viria, a partir da morte, o fenômeno da vida. Um dos pontos que tentei mostrar no livro é que, obviamente, não há uma razão prévia, ou metabiológica, nem para a morte nem para a vida; elas precisam ser pensadas e aceitas como dois aspectos de um mesmo acontecimento, do ciclo de vida-e-morte, isto é, de produção e desfazimento, de transformação, sem dicotomia entre estes aspectos de toda transformação. Tentei mostrar também que a agressividade humana pode ser compreendida muito melhor por uma teoria dos afetos do que pelo conceito de pulsão de morte.
Olhar Virtual: Nesse caso, a morte em questão é a morte física? Como essa pulsão se traduz no dia-a-dia das pessoas?
André Martins: O conhecimento de que as coisas acabam, se transformam e de que um dia se irá morrer é o ponto em questão, a finitude e a consciência da finitude. Não acho apropriada a questão de como essa pulsão se traduz no dia-a-dia das pessoas justamente porque não considero - tal como Winnicott - que essa pulsão exista, ou ainda, que postulá-la possa ser de algum proveito ou benefício, seja teórico, existencial ou clínico. O que há é a tragicidade da vida, o fato da morte e da finitude, e os afetos que estes provocam em nós.
Olhar Virtual: Como esse conceito se relaciona com o instinto violento existente em cada um de nós?
André Martins: Segundo Freud, nossa agressividade seria uma expressão da pulsão de morte que habitaria em nós e, em seu caráter destrutivo, se tornaria violenta. Einstein, em uma carta endereça a Freud, questiona: "por que a guerra?". Freud, em sua resposta, afirma que ela se deve aos efeitos da pulsão de morte em nós. Não lhe passou pela mente entender a gênese da agressividade e como essa, tão fundamental para tudo o que há de construtivo na vida, pode se tornar violência e destrutividade.
Olhar Virtual: No livro, o senhor se vale de outros autores, como Winnicott, Spinoza, Nietzsche e Deleuze, para tratar do conceito de pulsão de morte. Em que eles contribuíram para a evolução do conhecimento acerca dessa pulsão?
André Martins: Não há evolução acerca dessa pulsão, pois ela não existe, ao menos, não como Freud a concebera e a história da Psicanálise a transmitiu. Se encararmos a pulsão de morte como uma pulsão destrutiva em nós, ela é um efeito, tem uma gênese, não é uma causa, como Freud sugeriu. Winnicott contribuiu de forma fundamental para a Psicanálise ao considerar esse conceito - não há esta pulsão na natureza, trata-se de um conceito - inútil, sem eficácia para explicar o que se propõe a explicar. Em meu livro, trago, além de Winnicott, autores da filosofia, como Spinoza, Nietzsche e Deleuze, para responder de forma, a meu ver, mais satisfatórias às questões que Freud tentou responder lançando mão desse conceito. São filósofos cujas propostas fogem de explicações metafísicas, que se interessam em compreender como nossos afetos se produzem.
Olhar Virtual: Como os conceitos de não completude e falta se articulam com a pulsão de morte?
André Martins: Freud e, depois dele, Lacan tratam o desejo como falta: desejo o que não tenho, e, quando passo a ter, deixo de desejar. Essa concepção de desejo é proveniente de Platão, mas há outras. O problema grave dessa ideia é que é apresentado um caso de figura, generalizando-o de forma abusiva, e desse modo, mais uma vez, não se entende qual a gênese do desejo que se dá pela falta. O desejo pela falta tem suas condições, não é todo desejo que se move dessa forma. Em Lacan, a pulsão de morte corresponderia, em certa medida, a esse desejo, um desejo de completude impossível, somente alcançável com a morte. Isso já se encontra em Freud, na interpretação que ele faz do estado de Nirvana de Schopenhauer. Ao estudarmos Nietzsche, fica claro que essa é apenas uma versão do niilismo e, de maneira alguma, uma essência ou definição do desejo.
Olhar Virtual: Em que o seu livro contribui para a clínica psicanalítica?
André Martins: Espero que possa contribuir para que a clínica se valha de outros instrumentos teóricos, mais eficazes que o da pulsão de morte. Aliás, muitos psicanalistas, mesmo não winnicottianos, já não veem utilidade clínica na metafísica da pulsão de morte. Acredito que esse livro possa servir de instrumento para a compreensão de o quanto ficamos melhor sem este conceito. A pulsão de morte é como um conceito-canto-de-sereia: como há agressividade, como vivemos em sociedades e momentos históricos violentos, parece que o conceito ajuda a entendê-los, quando, a meu ver, apenas agrava sua não compreensão, pois além de dar pistas falsas, estas acabam sendo um obstáculo para a compreensão da gênese efetiva - e afetiva - tanto individual quanto social da violência.