No dia 1º de junho, a capa do jornal O Dia mostrava uma matéria que nos remetia aos tempos da ditadura. Três jornalistas e um morador foram torturados em 14 de maio, na favela do Batan, região de Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Os membros da imprensa sobreviveram, mas não se têm notícias sobre o morador.
O acontecimento suscitou uma série de debates acerca da liberdade de imprensa e da ameaça à nossa democracia, além de uma manifestação na Cinelândia, com a presença de candidatos à prefeitura da cidade e membros de associações como a ABI (Associação Brasileira de Imprensa). “É grave uma imprensa ser chantageada, tolhida em sua função de investigar. A imprensa tem a função de esclarecer, ajudando a reverter a situação das milícias”, declarou Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ.
Ela nos alerta, porém, que a importância dada ao debate acerca da segurança dos jornalistas e da liberdade de imprensa pode obscurecer a crueldade da tortura. Esse tema poderia criar uma discussão mais ampla na sociedade. “Tendo como vítimas jornalistas ou não, feita pela milícia, feita pela polícia, a tortura deve ser rechaçada, criticada e condenada. Pode se pensar sobre a institucionalização da tortura e como essa prática é incorporada na cultura policial de modo que a milícia, derivação da polícia, passou a adotá-la. Acho que a imprensa deve chamar a atenção de como isso é uma prática de ostentação de poder por parte da milícia e que pode afetar qualquer um”, afirmou.
— Quando a tortura acontece ao cidadão comum, que não tem o acesso à mídia tradicional da mesma forma que os jornalistas, não encontramos o mesmo nível de indignação — chama a atenção a professora, lembrando que pouco se fala sobre o morador que também sofreu com os atos de tortura e se encontra desaparecido.
Ivana Bentes questionou algumas práticas do jornalismo investigativo. “A mídia hoje é uma espécie de primeiro comando da capital. Ele é identificado com um lugar de poder, que pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Não só a milícia pratica a ilegalidade, como também a própria imprensa atua nessa zona obscura através de câmeras escondidas e grampos telefônicos. Essa invasão da privacidade é quase tão grave quanto a tortura. A sociedade deve questionar tanto o problema do corporativismo da polícia e da milícia quanto o da imprensa”, explicou.
— Acho que o jornal O Dia talvez tenha sido ingênuo, mas o dever do Estado é garantir o direito de ir e vir. O jornal fez um esforço para investigar; se tivesse tomado certas medidas, como negociar com os milicianos, por exemplo, a matéria seria prejudicada. Não sei detalhes sobre as medidas que o jornal tomou. O Dia deveria ter sido mais cuidadoso, mas é um absurdo que em uma democracia nosso direito de ir e vir esteja prejudicado — ressaltou.
Outro problema com a cobertura jornalística levantado pela especialista foi o de que a fonte primordial de informações em ações policiais nas favelas é a própria polícia. De acordo com a entrevistada, é necessário dar mais espaço a outras vozes, como a das associações de moradores. “E esse problema se complica na cobertura da situação das milícias, já que elas têm uma relação crucial com a polícia”, alertou.
Para a professora, o episódio contribuiu para perpetuar o medo entre os profissionais da imprensa. “Que jornalista vai querer voltar à favela? Que morador vai querer passar informação? Episódios como esses marginalizam simbolicamente a favela, deixa-a mais no gueto”, alertou.
A diretora da ECO ressaltou que esse painel só aumenta a importância das mídias comunitárias. “Onde a imprensa tradicional não consegue entrar, o papel dessas produções, já importantes por divulgarem as versões dos moradores, só aumenta. É fundamental fortalecer as redes comunitárias e iniciativas como o Observatório de Favelas e a Central Única das Favelas. Redes de internet também servem como difusoras dessas versões. Claro que também há risco para quem participa dessas mídias, mas não podemos deixar o clima de terror tirar dos moradores o direito de enunciação”, concluiu.