Revelar como as mulheres de diversas idades lidam com a beleza, mostrando suas escolhas e práticas de consumo. Esse é intuito do livro O tempo da beleza – consumo e comportamento feminino, novos olhares, organizado por Letícia Casotti, Maribel Suarez e Roberta Dias Campos, resultado da pesquisa “Beleza no cotidiano”, desenvolvida pelo Instituto Coppead de Administração, juntamente com o núcleo Cátedra L´Oréal – de comportamento do consumidor.
A obra é dividida em duas partes. A primeira detalha os resultados da pesquisa de campo, realizada com mulheres, cariocas, de classe alta e com idades entre 17 e 55 anos. Essa parte é subdividida em quatro “momentos de vida” e, a partir do método itinerário – investigação executada no ambiente doméstico das entrevistadas – apresenta-se depoimentos e fotos dos produtos para definir, de forma mais próxima da realidade, o comportamento e o consumo de produtos de higiene pessoal e cosméticos.
A segunda parte reúne artigos de psicólogos, antropólogos, economistas e sociólogos, que compõem o rico conteúdo acadêmico do livro e levam o leitor a uma reflexão sobre as diferentes culturas, o funcionamento das sociedades e as particularidades do nosso tempo, dissociando, assim, o tema do usual universo da futilidade.
O Olhar Virtual conversou com as organizadoras Letícia Cassoti e Maribel Suarez para compreender como funcionou a pesquisa e seu método diferenciado, além de discutir a importância do estudo para as empresas e para o meio acadêmico.
Olhar Virtual: O livro foi resultado de um trabalho de pesquisa realizado na Cátedra L’Oréal. Qual a importância de parcerias como essa do Coppead com empresas?
A existência deste tipo de parceria já é tradição nas universidades americanas e européias, mas, no Brasil, ainda é raro encontrar esse tipo de iniciativa, sendo o Coppead pioneiro na montagem de programas desta natureza. Atualmente, além da Cátedra L´Oréal, mantemos parcerias de longo prazo com empresas como Ipiranga e Amil. Esse tipo de parceria é fundamental para que se formem profissionais e se desenvolvam pesquisas que, mais do que reproduzir o que se tem discutido fora do país, consigam pensar a nossa realidade.
Olhar Virtual: Para entender melhor o comportamento das consumidoras, vocês chegaram a vasculhar as casas das mesmas. De que maneira esse método influenciou o resultado final da pesquisa?
No início da pesquisa, diversas vezes nos deparamos com discursos que definem a beleza a partir de características não-físicas, como alegre, bem-humorada, segura de si mesma. São falas de homens e mulheres de diversas idades – dermatologistas, cirurgiões plásticos, cabeleireiros e jornalistas especializados. Até mesmo jovens modelos entrevistadas no evento de moda Fashion Rio repetiram esse discurso sobre uma beleza intangível. Por isso, decidimos utilizar o Método dos Itinerários, desenvolvido por Dominique Desjeux, professor da Universidade Paris V, que vem sendo utilizado por antropólogos e sociólogos franceses há vários anos para a investigação do consumo e dos consumidores. O método reflete na sua estrutura uma visão que vai além do momento da compra, para incluir toda a interação entre o consumidor e o bem antes e depois da aquisição. Sua proposta é observar os movimentos das coisas, os gestos realizados, os espaços e suas regras de ocupação.
Na pesquisa sobre beleza, por exemplo, as entrevistadas percorriam junto com as entrevistadoras os diferentes cômodos das casas, revelando onde eram comprados, como e onde eram usados, guardados e jogados fora os produtos de higiene e beleza. Essa estratégia baseada no uso e na circulação dos produtos pela casa se revelou oportuna por dois motivos. Em primeiro lugar, na coleta dos dados, por tirar o foco dos indivíduos para colocá-lo nos objetos de uso cotidiano – assim, a entrevistada tem a sensação de não estar falando sobre ela própria ou sobre suas preocupações com beleza, mas apenas sobre cremes, xampus e maquiagem. Em segundo lugar, no processo de análise, por permitir experimentar a oportunidade de deslocar o olhar para uma perspectiva menos convencional, um olhar sistêmico e íntimo, permitindo uma compreensão detalhada e renovada sobre o tema.
Olhar Virtual: O foco da pesquisa foi mulheres de classe alta. Por que essa escolha?
As mulheres de classe alta da zona sul carioca mostraram-se como um primeiro grupo de interesse por se tratarem de consumidoras que, em princípio, teriam poucas limitações para a adoção de produtos de beleza no seu cotidiano. De maneira geral, elas detêm recursos financeiros, acesso às lojas e às informações. Todas as entrevistadas foram recomendadas por conhecidos das pesquisadoras, e essa familiaridade parece ter facilitado o processo das entrevistas. No futuro, pretendemos promover pesquisas para entender melhor o consumo das classes mais baixas, onde o consumo tem crescido bastante.
Olhar Virtual: Apesar das implicações psicológicas, culturais, sociais e econômicas que esse tema – beleza – pode adquirir, poucas publicações levam a uma reflexão sobre o assunto. A que se deve esse fato?
Essa é uma boa pergunta. Talvez por sua rápida associação com o universo da futilidade, a beleza tenha ficado até bem pouco tempo à margem dos estudos nas Ciências Sociais.
Olhar Virtual: A pesquisa foi dividida em quatro “momentos de vida” e não simplesmente por faixa etária: “O momento é agora”, “O tempo existe”, “O tempo não pára” e “Cada coisa em seu tempo”. Como funciona essa divisão?
O momento é agora é um grupo formado por estudantes jovens, financeiramente dependentes de seus pais. Quando falam de seus cosméticos, o foco está no momento presente. A lógica de consumo privilegia o resultado imediato e a aparência natural. Nesta fase, chama atenção a tutela exercida pela mãe, que se manifesta na escolha de marcas e na compra, no uso e na gestão dos produtos.
No grupo O tempo existe estão mulheres com novas responsabilidades profissionais e pessoais, mas ainda sem filhos. Elas começam a se dar conta dos efeitos do tempo sobre o corpo. Em seu consumo, idealizam uma rotina de uso de produtos de beleza que nem sempre conseguem pôr em prática. Caracterizam-se por uma intensa experimentação de produtos e pela busca de autonomia no consumo de cosméticos. São consumidoras que vivem um importante processo de aprendizado: precisam conhecer melhor seu corpo, os cosméticos e as formas de gerir esse universo nos diferentes espaços da casa.
Já o grupo O tempo não pára é caracterizado por mulheres que exercem múltiplos papéis (mãe, esposa, profissional, dona de casa). Elas percebem intensamente os efeitos do tempo sobre o corpo e, por isso, tentam lutar contra o envelhecimento. Filhos ainda dependentes tornam a rotina repleta de tarefas e marcada por urgências. Mesmo enfrentando demandas diversas, elas procuram fazer uso do tempo para inserir em sua vida gestos mínimos de beleza, os quais chegam a considerar religiosos. Seu consumo é consciente, exigente e objetivo.
Por fim, as mulheres do grupo Cada coisa em seu tempo encaram com mais tranqüilidade a rotina – algumas já com os filhos criados e o trabalho menos exigente. A consciência do envelhecimento e a preocupação com ações preventivas ganham ainda maior espaço no dia-a-dia dessas mulheres através da diversificação e sofisticação dos gestos de cuidados pessoais e beleza. Em sua rotina, percebe-se um número maior de situações dedicadas a essas atividades.
Olhar Virtual: Qual a importância da pesquisas para as empresas em geral e, especificadamente, as de cosméticos?
Conhecer o consumidor é fundamental para alcançar diferenciação. As empresas têm à sua disposição muitos dados sobre consumo. Com novas tecnologias, parcerias com o varejo e programas de fidelidade, é possível saber quem compra, o que compra, quando compra e quanto compra. Entretanto, todo esse conhecimento não deve ser considerado suficiente para explicar o consumo que ali se processa. É importante lembrar que a hora da verdade com as ofertas das empresas se dá em outro local, bem distante da promessa das prateleiras e do tilintar das máquinas registradoras. É no dia-a-dia, dentro da banalidade da vida cotidiana, que os produtos são recriados e ganham sentido para as consumidoras. Assim, ainda que tenham sido planejados nos escritórios de design e laboratórios, produzidos nas fábricas e preenchidos de significados culturais pelas agências de publicidade, é no contexto de vida de quem os consome que eles vão acontecer.
Mais do que ouvir explicações racionalizadas das consumidoras entrevistadas, procuramos entender seu contexto, sua dinâmica de vida, suas limitações de tempo e espaço, suas histórias e suas práticas. O esforço de fazer esses elementos emergirem da relação com os produtos resulta na possibilidade de ver a questão sob novos pontos de vista. Espera-se que essa visão permita às empresas vislumbrar possibilidades de inserção de seus produtos na vida das consumidoras ou, pelo menos, as ajude a entender por que alguns lançamentos não conseguem entrar no cotidiano das consumidoras ou acabam no fundo da gaveta, sem possibilidade de recompra.