Entrelinhas

Conhecer para mudar

Aline Durães

O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade. Foi assim que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844–1900) resumiu o poder que o ato de conhecer tem sobre a vida de um indivíduo. Séculos antes, mais precisamente no século XVII, outro filósofo muito conhecido, Baruch Spinoza (1632–1677), enunciava afirmação semelhante. Também o pensador holandês acreditava que no conhecimento a humanidade encontraria a mais forte fonte de transformação social.

Apesar de extemporâneas e de guardarem distâncias evidentes entre si, as filosofias de Nietzsche e Spinoza possuem importantes pontos de similaridade. Foi o próprio Nietzsche que as enumerou: em uma carta enviada a Franz Overbeck em julho de 1881, o filósofo alemão destaca que encontra em Spinoza seu único precursor. Além de encararem o conhecimento como o mais potente dos afetos, Nietzsche e Spinoza defendiam opiniões semelhantes sobre o livre-arbítrio, a teleologia e as causas finais, a ordem moral do mundo, o desinteresse e o mal.

Para esmiuçar essas similitudes, André Martins, professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), organizou o livro O mais potente dos afetos: Nietzsche e Spinoza. Lançada no ano passado, a obra traz artigos de pesquisadores brasileiros e franceses que abordam, sob o ponto de vista de Spinoza e de Nietzsche, cada um dos pontos de identificação entre os dois filósofos.

Em entrevista ao Olhar Virtual, André Martins explica o impacto do pensamento dos dois pensadores na tradição filosófica, comenta o entendimento que ambos possuíam sobre o conhecimento e fala das dificuldades de tecer uma análise comparativa entre Nietzsche e Spinoza. Confira.

Olhar Virtual: Por que fazer uma análise comparativa entre Nietzsche e Spinoza?

André Martins: Na história da Filosofia, desde Sócrates e Platão, a tradição filosófica se baseia na separação entre corpo e mente ou corpo e alma, com um privilégio da alma sobre o corpo. No século XVII, Spinoza foi o primeiro que, de uma maneira clara e explícita, entendeu corpo e mente como dois aspectos de uma coisa una. Ele se contrapôs a Descartes, por exemplo, que afirmava que o corpo era uma substância distinta da alma. Apesar de Spinoza, a tradição filosófica continuou com essa dicotomia. Só Nietzsche, no século XIX, retomou essa união. Nietzsche diz que se encontra em Spinoza numa tendência geral, o que, para ele, é o conhecimento como o mais potente dos afetos.

Olhar Virtual: Foi apenas em 1881 que Nietzsche intitula Spinoza como seu precursor. Por que demorou tanto tempo para o filósofo alemão assumir essa influência?

André Martins: As obras de Spinoza foram publicadas postumamente. Spinoza causou escândalo na história da Filosofia. Sua ideia era não só renegada como considerada inaceitável. Foi também, no entanto, muito elogiado, porque tem uma filosofia muito bem estruturada, cheia de virtude. Ele era considerado um ateu virtuoso, apesar de não ser ateu. Mas como um ateu, naqueles tempos, podia ser considerado virtuoso? Ele deveria ser tachado de diabólico. Nietzsche já havia escrito sobre Spinoza antes. Eram textos elogiosos. Mas foi em 1881 que ele admitiu a identificação em cartão postal escrito para um amigo.

Olhar Virtual: Por que o conhecimento é o mais potente dos afetos?

André Martins: A aposta do Nietzsche, extremamente spinozista, é de que, com o conhecimento da realidade, a pessoa se afeta melhor nela ou com ela. Afetar significa não ficar indiferente. O conhecimento é o mais potente dos afetos porque, diferentemente do amor, ciúme, inveja, admiração, ambição etc., é o afeto capaz de transformar os demais. Se eu entendo o que me acontece, em vez de buscar subterfúgios na crença, seja na religião ou na ciência, eu consigo me fortalecer para enfrentar o que está acontecendo.

Olhar Virtual: Mas o conhecimento também não seria um afeto influenciado pelos demais? Existe conhecimento puro?

André Martins: Aí é que está. Segundo a tradição, o conhecimento puro é o conhecimento almejado. Por exemplo, Kant, filósofo posterior a Spinoza e anterior a Nietzsche, achava que a razão, o conhecimento devia ser puro. Esse puro quer dizer “depurado do corpo e das experiências sensíveis”. Ele postulava que você só pode conhecer a partir da experiência sensível, mas o conhecimento puro é aquele que, a partir dessa experiência, se liberta dela. Sempre se buscou um conhecimento purificado da experiência sensível e, portanto, dos afetos. A novidade de Spinoza e retomada a seu modo por Nietzsche é que isso não existe, é uma quimera. É justamente o não-conhecimento. Não conhecer e não conseguir se afetar melhor. A pessoa só pode conhecer através dos afetos. É isso que eles dizem.

Olhar Virtual: Além da tendência geral, que é de enxergar o conhecimento como o mais potente dos afetos, Nietzsche enumerou outros cinco pontos de aproximação de sua filosofia com a de Spinoza: negar o livre-arbítrio, a teleologia e as causas finais, a ordem moral do mundo, o desinteresse e o mal. Vamos nos ater ao ponto mais polêmico: a negação do livre-arbítrio. Qual a semelhança entre o pensamento dos dois filósofos?

André Martins: Nenhum dos dois nega as escolhas. Na tradição, o livre-arbítrio quer dizer que você decide sobre as suas ações de uma maneira livre do corpo. O livre-arbítrio afirma que sua mente e sua razão decidem coisas a respeito do seu corpo, de você mesmo, dos seus afetos, e tenta impor essas decisões sobre o seu corpo. Então você é livre e tenta lutar contra a prisão do corpo.

Nietzsche e Spinoza negam a existência do livre-arbítrio, porque, em primeiro lugar, quando a gente pensa já pensa com o corpo. Não tem como impor ao corpo o que quer que seja. Em segundo lugar, as próprias decisões são determinadas pelos nossos afetos. Não há, dessa forma, uma liberdade racional sobre os nossos afetos, na medida em que nossas decisões já são predeterminadas afetivamente. O eficaz, para eles, é entender os fatores determinantes do modo que nos afetamos. Buscar, pela compreensão, transformar a minha maneira de nos afetar, isso, sim, implicará mudanças em nossas ações.

Olhar Virtual: Nietzsche resgatou ou atualizou Spinoza?

André Martins: Nietzsche foi influenciado por Spinoza, mas por outros filósofos também, inclusive por pensadores que estão muito mais na tradição. Filósofos do romantismo alemão, herdeiros de Kant. As influências diretas dele não incluem Spinoza, embora ele o cite entre os filósofos que admira. Essa proximidade absurda entre os dois independe de uma herança direta. É porque, de fato, um e depois o outro estão olhando para o real buscando conhecê-lo sem querer purificá-lo. Nietzsche agregou dados, mas, mesmo no livro, aparecem as discordâncias entre eles.

Olhar Virtual: Spinoza era adepto do panteísmo (teoria na qual Deus e natureza são encarados como a mesma coisa). Já Nietzsche era ateu. Qual a principal dificuldade ao traçar uma análise comparativa entre dois autores extemporâneos que, embora próximos em alguns traços, são díspares em outros?

André Martins: As diferenças aparecem. Uma das disparidades iniciais entre os dois é que Spinoza escreve sobre a ordem geométrica, de uma maneira formalmente lógica e arrumada. Nietzsche escreve por aforismos desordenados. A coerência forte que existe nele deve ser buscada, não é evidente. Já no estilo de escrita eles se opõem. Ligado a isso, Spinoza propõe um tratamento sereno, temperado. E Nietzsche propõe um pensamento bombástico, explosivo. Essa é outra diferença. A partir daí, entendo que a dificuldade maior foi que os nietzschianos convidados sempre implicavam com Spinoza. Sendo que os spinozistas não adotavam essa postura, citavam Nietzsche e enfatizaram que o admiravam. A principal dificuldade foi ver a diferença das filosofias dos filósofos refletidas nos pesquisadores.

Olhar Virtual: Como o livro está organizado?

André Martins: Apesar de Nietzsche ter enumerado os seis pontos de identificação com Spinoza, não os desenvolveu. A minha ideia então foi organizar uma introdução e convidar pesquisadores franceses e brasileiros — seis spinozistas e seis nietzschianos — para abordar cada ponto sem levar em consideração o outro filósofo; assim, o leitor pode fazer suas próprias comparações. 

Olhar Virtual: Na sua opinião, como a obra afetará o leitor?

André Martins: Este é um livro extremamente acadêmico, mas que, em função dessa nova visão da Filosofia, tem um grau de acessibilidade para o público culto leigo. Ele força as pessoas a pensar, independentemente de serem iniciadas ou não em Filosofia.

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