A primeira partida oficial de futebol do Rio de Janeiro foi disputada no Rio Cricket e Associação Atlética (RCAA), de Niterói, em 1º de agosto de 1901. Esse é apenas um dos muitos acontecimentos que marcaram a história do centenário clube de Icaraí, contada no livro Rio Cricket e Associação Atlética – mais de um século de paixão pelo esporte.
A obra é fruto da parceria feita entre os pesquisadores Patrícia Iorio, mestre em jornalismo pela Southern Illinois University, USA, e doutoranda em Literatura Comparada na UFRJ, e Vitor Iorio, Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor de Comunicação na FACC/UFRJ. O lançamento aconteceu no último dia 28, no salão do Rio Cricket.
Durante o processo de criação do livro os autores enfrentaram alguns percalços, como a perda do primeiro livro de atas em uma enchente, o que, no entanto, não os impediu de fazer um minucioso relato da vida do clube, também conhecido como “Clube dos Ingleses” devido à nacionalidade de seus fundadores. Patrícia e Vitor Iorio narram as memórias do RCAA sob diferentes perspectivas. Eles abordam diversos assuntos, como a relação dos ingleses com a Coroa Portuguesa e as iniciativas pioneiras no esporte. Confira na íntegra a entrevista com o casal.
Olhar Virtual: O que os motivou a escrever um livro sobre a história do Rio Cricket?
Fomos convidados por um diretor do Rio Cricket e Associação Atlética a contar a história do clube. Ele conhecia o livro que escrevemos em 2001 sobre o Paissandu Atlético Clube e, como os dois clubes são irmãos ─ o Paissandu é o antigo Rio Cricket Club carioca, fundado em 1872, de onde alguns sócios saíram anos mais tarde para fundar o RCAA, em Niterói ─, o diretor concluiu que nossa familiaridade com o assunto e o fato de sermos pesquisadores garantiriam um relato isento e comprometido com os fatos.
Olhar Virtual: Quando e como foi fundado o clube?
Para melhor entender a fundação do Rio Cricket e Associação Atlética é preciso voltar um pouco no tempo, já que o clube de Niterói é uma dissidência de um clube carioca, o Rio Cricket Club (na verdade, na época da fundação do RCAA, o RCC atendia temporariamente pelo nome de Clube Brasileiro de Cricket), hoje conhecido como Paissandu Atlético Clube. Fundado em 1872, o RCC era uma associação esportiva de ingleses que funcionava em terreno alugado à Princesa Isabel e ao Conde D’Eu, em frente à residência do casal, hoje Palácio Laranjeiras. Desde o começo de suas atividades, os sócios do RCC temiam pela sobrevivência do clube justamente por sua sede não estar estabelecida em terreno próprio. Naquela época a experiência mostrava que um clube só teria vida longa se tivesse sede própria.
Com a proclamação da República, os terrenos da coroa foram confiscados e repassados ao então recém-criado Banco da República, fato que deu início a um longo período de instabilidade, pois o terreno foi colocado à venda (sem sucesso) e o valor do aluguel foi aumentado. Inseguros, alguns sócios do RCC, liderados pelo fundador George Cox, arrecadaram fundos entre si e entre empresas inglesas instaladas na cidade e começaram a procurar terreno no Rio para que pudessem comprar e transferir o clube. Não tendo recursos suficientes para comprar área no Rio com tamanho adequado para as atividades do clube, tais sócios iniciaram busca em Niterói, onde acabaram achando um em Icaraí, na esquina das ruas Miguel de Frias e Fagundes Varela (nomes atuais). Cox e outros sócios ingleses do RCC, como Basil Freeland, R. A. Brooking e W. L. Wheatley, deixaram o clube carioca e fundaram em 15 de agosto de 1897 o Rio Cricket and Athletic Association, hoje Rio Cricket e Associação Atlética, para a prática de críquete, tênis e esportes atléticos.
Olhar Virtual: Como a questão da influência inglesa no gosto esportivo dos brasileiros é abordada no livro?
O livro recua no tempo com o objetivo de resgatar as relações da Inglaterra com Portugal e com o Brasil desde o século XVII. Explicamos a expansão da indústria e do comércio britânicos, quando a Inglaterra passou a ser a maior fornecedora de produtos manufaturados para o Brasil e abarrotou os portos da colônia portuguesa com mercadorias que proporcionariam novos modos de viver. Registramos a grande presença de empresas britânicas no Brasil, especialmente no Rio durante o século XIX, e a falta que os funcionários dessas empresas sentiam de hábitos ingleses, como freqüentar clubes sociais e praticar esportes, o que os levou à fundação dos primeiros clubes por aqui. Em contrapartida, mostramos as condições favoráveis no Brasil para a aceitação das idéias e dos comportamentos vindos com os ingleses, entre eles o gosto pelos esportes. Apesar de ser uma época em que as elites e as classes médias brasileiras cultuavam o valor do ócio e a convicção de que o esforço físico não era digno, havia, incontestavelmente, uma atmosfera favorável para o novo, sobretudo para aquilo que vinha da Europa impregnado de valores considerados civilizadores. Isso explica a importação do ideário fisiculturista e da filosofia do mens sana in corpore sano, que contagiou os brasileiros com uma nova atitude corporal moldada na glorificação da vida saudável, na prática de esportes e na utilização de áreas ao ar livre para a prática de exercícios físicos. Paralelamente à idéia reinante então de que “ser moderno era ser estrangeiro”, os espaços urbanos começavam a ganhar novos contornos com o fim do Império e o anúncio da República: sem destinação específica, os terrenos baldios e praças ofereciam-se sem maiores cerimônias para abrigar práticas mais socializantes, como o lazer coletivo ao ar livre, os embates esportivos e mesmo a formação de público (mais tarde chamado de torcida) para assistir aos jogos ali realizados.
Embora a versão mais corrente na historiografia dos esportes no Brasil insista em atribuir ao estrangeiro civilizado (o estudante que vem do exterior) o posto de introdutor das práticas esportivas aqui, não nos deixamos seduzir pelo mito do “herói fundador” por considerá-lo demasiado positivista: em vez de reforçar a idéia da submissão, da imitação ou da dependência cultural dos brasileiros diante dos ingleses, preferimos reconhecer o papel determinante da espacialidade urbana da capital do Império e, mais tarde, da capital da República na disseminação dos esportes na cidade e cercanias. Independentemente de sua origem, as práticas esportivas só se tornaram possíveis aqui quando os espaços públicos se tornaram aptos a vivenciá-las, atraindo a elite para a rua e permitindo que seus representantes exercitassem os músculos sem preconceitos. Embora os esportes tenham demorado a atrair os brasileiros, mesmo sendo praticados pelos ingleses, foi o fato de os jogos terem sido inicialmente realizados nesses espaços públicos que lhes conferiu visibilidade e lentamente foi permitindo a familiarização dos brasileiros com as diferentes modalidades esportivas.
Olhar Virtual: A primeira partida de futebol oficial do Rio de Janeiro aconteceu em 1901 no RCAA. Qual é a importância do clube para o futebol fluminense e brasileiro?
A importância deste primeiro jogo realizado no RCAA para o futebol fluminense e brasileiro foi a de impulsionar a prática desse esporte no Estado, conquistar o interesse de pessoas de toda classe social, seja para entrar em campo como jogadores (embora os primeiros times fossem todos compostos por membros da elite estrangeira) seja para torcer acompanhando as pelejas, e contribuir para que o futebol se tornasse a paixão de todo brasileiro. No caso específico dos ingleses do RCAA, sua contribuição foi manter acesa desde 1901 até hoje a chama da paixão pelo futebol lúdico, que vem alimentado as escolinhas de esporte no clube e a formação de craques como Leonardo, que têm brilhado no futebol brasileiro e internacional.
Olhar Virtual: Além de ser um espaço onde as pessoas podem praticar diferentes tipos de esportes, um clube também é um espaço de convivência social muito intensa. Qual é o papel do Rio Cricket na história do Rio de Janeiro?
Num primeiro momento, o clube funcionou como ponto de encontro para aqueles que tinham deixado seus países com a finalidade de trabalhar nas numerosas empresas estrangeiras que se instalaram no Rio e em Niterói. A associação se consagrou como uma eficiente forma de congraçamento entre estrangeiros que sentiam falta dos costumes de sua terra natal e acabou consolidando laços de amizade entre eles e facilitando sua permanência aqui. Dentro dos limites do clube, a língua oficial era o inglês, usado nas atas, nos documentos, nas correspondências e nos comunicados aos sócios. Os esportes praticados eram os ingleses: críquete, tênis, atletismo, futebol, bowls (uma espécie de bocha com bola e na grama), rúgby, hóquei, badminton. O tradicional hábito de encontrar os amigos para um drinque ao final do dia de trabalho ou nos fins de semana era regado a uísque e cerveja e contrabalançado com sanduíches de pepino e de ovo, e torta de rim. Os ingleses se sentiam em casa no clube e o RCAA se configurava como um pedaço da Inglaterra incrustado no centro de Niterói.
Num segundo momento, a partir da Segunda Guerra Mundial, especialmente, a comunidade foi forçada a se abrir para os brasileiros e funcionou como espaço de intercâmbio entre as duas culturas. Foi a presença dos brasileiros que permitiu que as tradições inglesas não fossem tragadas pela então iminente falência do clube. Foi a presença dos brasileiros que concedeu às mulheres e crianças inglesas uma participação mais ativa na vida do clube. Por outro lado, foi o contato com os ingleses que cultivou nos brasileiros o prazer da brincadeira, do esporte lúdico, da confraternização entre equipes adversárias antes e depois do jogo.
Fora isso, o papel do RCAA na história do Rio de Janeiro é inerente à sua condição de terceiro clube esportivo mais antigo ainda em atividade na cidade de Niterói. Lá se encontra um campo de dimensões oficiais que talvez seja o que há mais tempo sedia jogos de futebol no mundo: desde 1901 até hoje! E, de quebra, o clube ainda funciona como guardião de um expressivo pedaço de mata atlântica incrustado bem no coração de Icaraí.
Olhar Virtual: Como os senhores definiriam a importância do livro Rio Cricket e Associação Atlética – mais de um século de paixão pelo esporte para a sociedade?
É um livro que narra uma trajetória de 111 anos de resistência, de luta para preservar uma cultura que valoriza a confraternização, a sociabilidade e o lúdico num momento em que a sociedade cultua a competitividade, a individualidade e o lucro. Conta a história de uma paixão pelo esporte que sobrevive a tudo: independentemente da desclassificação na Liga, das derrotas, da perda de craques para a guerra e da quase falência, o prazer de jogar, de brincar, de se divertir sempre foi a chama que manteve o clube vivo e seus sócios unidos.
No que diz respeito à importância do livro para a história dos esportes no Brasil, é preciso dizer que suas 288 páginas contribuem para desfazer alguns equívocos que vêm se perpetuando há anos sobre o começo das atividades esportivas no Estado do Rio. Tais equívocos teimavam em misturar os feitos do Paissandu com os do RCAA, inclusive atribuindo ao clube de Niterói a data de fundação e a herança de pioneirismos do clube carioca. Ambos foram fundados por George Cox em 15 de agosto e tinham Rio Cricket no nome, mas guardam 25 anos de diferença no ano de sua fundação: o Rio Cricket Club/Paissandu é de 1872 e o Rio Cricket e Associação Atlética é de 1897. Por força dessas coincidências, que nada mais eram do que uma homenagem do clube niteroiense ao clube carioca de onde saíram seus fundadores, muitos feitos do Paissandu vinham há muitos anos sendo atribuídos erroneamente ao RCAA em livros de referência e, conseqüentemente, sendo reproduzidos em sites e blogs sobre o assunto. Além disso, o livro do RCAA oferece farta e belíssima iconografia sobre a prática de esportes no Rio de Janeiro e em Niterói e representa valiosa contribuição ao estudo dos costumes de ingleses e brasileiros desde o fim do século XIX.