No último dia 7, na Blooks Livraria, em Botafogo, ocorreu o lançamento do livro Ao Soberano Congresso: Direitos do Cidadão na formação do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). O livro de Vantuil Pereira, professor adjunto do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ, tem como alicerce a tese desenvolvida pelo professor. A obra agora publicada aborda questões relativas à inserção política dos cidadãos no Primeiro Reinado. A partir do estudo de documentos relativos à época, Vantuil reúne em sua obra constatações que revelam a maneira como os brasileiros reivindicavam seus direitos civis de 1822 a 1831.
Olhar Virtual: Como surgiu o interesse em escrever sobre esse período da História Brasileira e, mais especificamente, sobre o tema 'Petições, requerimentos, representações e queixas à Câmara dos Deputados e ao Senado - Os direitos do cidadão na formação do Estado Imperial Brasileiro (1822-1831)?
Vantuil Pereira: O interesse pelo tema surgiu ainda na graduação, quando eu era bolsista de Iniciação Científica na Universidade Federal Fluminense. Trabalhava com documentos referentes ao Primeiro Reinado, especificamente com os Anais da Câmara dos Deputados. A intenção inicial era a de perceber como os deputados reagiram às primeiras notícias sobre o tratado de reconhecimento da Independência, assinado entre Brasil e Portugal, com mediação inglesa. Deparei-me com algumas petições de africanos, que pediam, por exemplo, a libertação de um navio, argumentando que eram tradutores livres e não escravizados.
Aquilo me deixou intrigado, como ser possível escravos ou africano peticionarem para o parlamento? É conhecido que escravos iam à justiça, como mostrou o trabalho de Keila Grinberg sobre a escrava Liberata. Do mesmo modo, a tradição de peticionar em Portugal desde épocas imemoriais é conhecida. Contudo, o que estava colocado ali era uma outra realidade, pois o antigo reino português acabava de se tornar autônomo e o Parlamento, sendo o Parlamento uma novidade em terras americanas.
Ao tomar conhecimento da existência dessas petições, logo entrei em contato com o Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados, que imediatamente me abriu as portas. Lá encontrei outras petições, agora de diversos cidadãos que representavam contra autoridades, abusos de poder, pelo direito de exercício das suas liberdades.
A temática começou a ganhar corpo e me debrucei sobre ela. Recebi do Arquivo Histórico da Câmara a relação do material que lá existia, podendo ser localizados mais 1.000 petições e requerimentos encaminhados por cidadãos ao Parlamento, entre 1823 e 1832, demonstrando um papel importante desse instrumento para a sociedade da época. Nessas mais de 1.000 podemos encontrar petições, reclamações e queixas que dizem respeito a aspectos formais e informais da vida cotidiana, isto é, estavam entre a letra da Lei e a vivência diária dos cidadãos.
Essas petições e requerimentos eram fontes inéditas, pouco exploradas pelos historiadores. Elas vislumbravam novas possibilidades de compreensão e de leitura da cidadania. Aliás, prefiro usar, em lugar de cidadania, o termo “direitos do cidadão”, haja vista que a própria noção de cidadania, enquanto termo que engloba os direitos civis, políticos e sociais, defendidos por T. H. Marshall, ainda não estava plenamente consolidado, ocorrendo apenas no primeiro terço do século XX, pelo menos. Nos primeiros anos de nossa vida política, discutia-se quais os atributos dos cidadãos e quais os instrumentos legais que resguardariam todos os membros daquela sociedade.
Até então, a historiografia tinha dado pouca ênfase ao debate dos direitos do cidadão sobre aquele período histórico. Muitos trabalhos versavam sobre a segunda metade do século XIX.
A maioria das obras historiográficas da primeira metade dos Oitocentos enfatizava a participação política de uma maneira geral. Assim, ao tomar conhecimento das petições e requerimentos de cidadãos, compreendia que a história do Primeiro Reinado tinha uma riqueza extraordinária, que extrapolava o campo da classe dominante, podendo ser reescrita sobre as bases das camadas intermediárias e subalternas, semelhante aos trabalhos de George Rudé, E. P. Thompson e Eric Hobsbawm.
O trabalho com as petições escravas me rendeu dois prêmios de Iniciação Científica na área de Humanas da Universidade Federal Fluminense. As possibilidades eram tamanhas que ele se transformou em um projeto de mestrado, aprovado nos Programas de Pós-Graduação de História Social da UFF e da UFRJ. Optei pela UFF.
O ineditismo das fontes era tamanho que, por ocasião da minha qualificação de mestrado, foi sugerido pela banca que eu fizesse passagem direta ao doutorado. Feito isto, pude desenvolver a tese, premiada no Primeiro Concurso de Teses e Dissertações do Centro de Estudos dos Oitocentos, coordenado por José Murilo de Carvalho e Gladys Sabina Ribeiro.
Outra questão que contribuiu foi meu interesse por estudar as temáticas raciais e de cidadania. Há muito, tenho ligações com os movimentos sociais, participei do movimento Constituinte de 1986, dos debates em torno das comemorações dos 100 anos da Abolição. Enfim, esse trabalho alinhavava os aspectos acadêmicos com a minha visão de mundo. Concebo a construção do conhecimento, o trabalho acadêmico, a pesquisa e a extensão como sendo um todo articulado com as demandas da sociedade civil, com as carências e lutas dos setores subalternos da sociedade.
Olhar Virtual: No livro, há um trecho que diz "que o processo desencadeado a partir da proclamação da Independência e o Constitucionalismo criaram a perspectiva da intervenção do cidadão nas coisas públicas." A seu ver, de que maneira isso configurou o Brasil que temos hoje?
Vantuil Pereira: Creio que existe uma relação dentro da qual podemos falar em processo histórico. Tudo tem história e ela não começou agora. Aqueles que acham que iniciou a partir da organização de partidos (como conhecemos hoje) acabam por desprezar a tradição de luta de escravos e brancos livres pobres no processo de construção do Estado brasileiro.
Ao longo de nossa história assistimos inúmeros episódios de participação política do cidadão, sempre reprimidos pela classe dominante. Parte do que escrevo tenta indicar que a sociedade civil não é, e nunca foi amorfa. Que a cidadania é um processo de luta política. Possibilidades colocadas que em um dado momento foram derrotadas, o que não quer dizer que essa derrota se perpetue ou que outro projeto hegemônico não possa surgir.
O processo de consolidação da política no decênio de fundação de nosso país foi conturbado. Como diversos trabalhos têm mostrado, parte dessa instabilidade também se deveu às camadas populares. Por outro lado, é preciso que qualifiquemos quais eram os projetos e grupos sociais com melhores condições de reagir às ações autoritárias.
O livro esclarece que parte dos que reagiram era composta por grupos intermediários, isto é, funcionários do Estado de baixo rendimento e militares. Não enfatizo o papel escravo no livro porque percebi que o Parlamento não era o principal caminho que eles tomaram. A realidade da escravidão, seu aspecto violento deixou marcas que levaram este segmento para outros caminhos. O instrumento peticionário era uma possibilidade colocada para os cativos, alforriados e mestiços citadinos. No entanto, a realidade o eito era de violência e isolamento. Para estes só restou o caminho da revolta e da negociação, mas tenho minhas dúvidas quanto essa última.
Enfatizar uma história dos grupos intermediários não inviabiliza as análises que tratam da questão escrava, de suas revoltas e ações. Ambas contribuíram para a construção dos direitos do cidadão.
Isto me fez lembrar um debate da Assembleia Constituinte de 1823, quando o José da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, alertava para o perigo de se falar em direitos e liberdades para e perto de escravos. Segundo ele, ao aproximar os debates sobre as liberdades, em se tratando de libertos e cativos, a questão se tornava explosiva, pois as lembranças da rebelião do Haiti, de 1801, eram recentes. Portanto, tratar da demanda de intermediários de brancos pobres, mestiços e libertos tem um significado explosivo, que contaminava a escravaria. Esta é uma questão que trato indiretamente no livro e que motivou a pesquisa.
Aquelas lutas, iniciadas no nascedouro do Brasil, criaram ao longo do tempo uma tradição e uma cultura política. Parte do que temos hoje é fruto de um confronto de projetos antagônicos que vem de longe, ocorrendo uma relação dialética entre os mesmos, isto é, a luta entre projetos de sociedade.
Isto quer dizer que, se existe uma apatia da população frente ao grande número de escândalos e impunidades, é porque a classe dominante soube consolidar um projeto de dominação.
Mas, de maneira alguma devemos enxergar isso como o fim da história. A história feita ziguezagues. O que parece firme em um determinado instante, pode parecer apenas “pés de barro” em outro. O que quero dizer é que a luta pela construção de parâmetros de igualdade, democracia e justiça é um longo processo político que não tem fim, é uma constante construção. A ação individual, mais a coletiva, pode fazer muito no sentido de transformação.
Olhar Virtual: Podemos afirmar que os mecanismos peticionários realizados durante o Primeiro Reinado pelos cidadãos individualmente cederam lugar, nos dias atuais, à imprensa? Isto é, atualmente, a imprensa passou a ser o meio pelo qual os indivíduos reivindicam seus direitos?
Vantuil Pereira: A resposta para essa questão é complexa. Eu não creio que a imprensa tenha substituído o papel peticionário do cidadão. Acho que são papéis distintos. O direito peticionário, na atualidade, cedeu lugar a outros instrumentos difusos de participação, que envolvem tanto aspectos individuais quanto coletivos.
Maria Victória Benevides já localizou quais poderiam ser os instrumentos, por exemplo, de participação semi-direta. Outros direitos do cidadão, por exemplo, encontram-se, dentre outros, nas ouvidorias, no ministério público. Somados aos da sociedade civil, como os sindicatos, partidos etc., que tem um importante papel no sentido de demandar coletivamente, podemos dizer que o que temos hoje são participações difusas em uma sociedade mais complexa do que tínhamos nos primeiros decênios de nossa Independência.
Por outro lado, o direito de petição, ao qual me refiro no livro, teve um papel fundamental quando estávamos no processo de consolidação dos direitos emanados da Revolução Francesa. Note que a temporalidade que o livro trata dista pouco mais de 40 anos (não mais que uma geração) da Revolução de 1789. Os debates sobre constitucionalismo, soberania e os direitos do cidadão estavam fervilhando. Querendo ou não um governante (seja ele déspota, republicano ou monarquista) teria de admitir a discussão, recusando ou aceitando o que dali surgia.
Por outro lado, como já disse, o ato de peticionar não era algo novo. O que estava mudando era a relação do cidadão com o soberano, que podia ser o parlamento ou um rei/imperador. Este é um ponto modal no livro. O cidadão tensionava o papel da soberania, esta tinha um novo imaginário a partir da fundação do Império. Podia lidar por eles como estando ora no Parlamento ora no Imperador. A parte importante é que setores da Câmara dos Deputados, sobretudo deputados como Bernardo Pereira de Vasconcelos e Lino Coutinho, souberam canalizar aquelas demandas, articulando-as com as lutas em torno do poder. Daí eu propor que existe uma totalidade complementar. O cidadão soube tirar proveito da luta política entre o Imperador e os liberais e, por outro lado, os liberais souberam ler as demandas da população, transformando-as em questão de Estado e de disputa política. Nós tivemos uma situação similar na Assembleia Constituinte de 1987-88.
Quando falamos no tempo presente, penso que estamos travando uma discussão sobre outros prismas. Os instrumentos de intervenção do cidadão são variados, como já apontei. A imprensa é um dos mecanismos que o cidadão dispõe, mas não o determinante. Sabemos que, em uma sociedade onde a informação, televisiva, por exemplo, tem um peso fundamental, elas são filtradas.
Veja, por exemplo, o que temos assistido nos últimos dias frente ao que se denominou chamar de “guerra” contra o tráfico, muito incentivado pelos órgãos de comunicação. Esses órgãos de informação tendem a filtrar as notícias. Pergunto eu: por acaso você viu alguma matéria jornalística sobre direitos humanos, ataques à inviolabilidade do lar, aspecto fundamental da Declaração dos Direitos Humanos? Se algum órgão a imprensa deu dimensão para o que tem acontecido no cotidiano das pessoas, sobre as inseguranças vividas no dia a dia? Mais, alguma notícia sobre os mais de 100 presos nos três ou quatro dias da ocupação do Alemão? Considerando o papel da imprensa e que a informação tem sempre dois lados, onde fica o direito dessas pessoas de se defenderem? Estamos em um Estado de direito, onde a imprensa tem o dever de colocar os dois lados. Existe a presunção de culpa dos detidos, mas ainda é uma presunção.
Portanto, o instrumento que este cidadão irá procurar para demandar não é a imprensa. Aqui entra o papel do Estado, que deve resguardar e garantir o direito de defesa desse cidadão. Deve também entrar o papel da sociedade civil. Alguns vão perguntar se os que foram presos ou mortos são cidadãos. Respondo que não só são cidadãos, como homens que têm de ter os direitos preservados.
Olhar Virtual: Em sua opinião, em comparação com a época retratada pelo livro, nos dias atuais ,levando-se em conta os diversos mecanismos existentes para promover a participação dos cidadãos, as pessoas reivindicam seus direitos menos do que deveriam?
Vantuil Pereira: Cada sociedade e cada tempo têm o comportamento que lhes são característicos. As pessoas do século XIX não reclamavam nem mais nem menos do que hoje. Reclamavam e demandavam de uma maneira diferente. Mesmo porque as perspectivas de transformação e desenvolvimento da sociedade eram outras.
Demandar contra uma autoridade significava afirmar direitos. A maioria das demandas foi recusada pelo Parlamento. O que não quer dizer que isso tenha sido ruim. O ato de demandar estava articulado com o quadro político como um todo, conforme disse arteriormente.
Aqui me lembro novamente do que me referia sobre o processo constituinte de 1986-1988. O processo que vincula as demandas populares, do movimento pró-Constituinte, as ações parlamentares na Assembleia Constituinte e os resultados que dali sairam fazem parte de um todo articulado. Não é possível você pensar na Constituição de 1988 e não considerar que muitos aspectos progressistas daquela Carta só foram possíveis porque a sociedade civil, tais como os sindicados, centrais sindicais, igrejas, associações de bairros etc. se mobilizara em torno da questão.
No caso das demandas do século XIX, elas devem ser vistas em seu conjunto e na sua totalidade. Não se trata de vermos casos individualizados. As petições e reclamações provocaram um imaginário que, somado à crise política vivida pelo Imperador Pedro I, possibilitou um cenário incendiário no que tange aos direitos do cidadão.
Ao nos referirmos ao tempo presente, responderia que as pessoas reivindicam menos. Primeiro porque existe uma tentativa velada de dizer que tudo não vai dar em nada. A impunidade que campeia o país ajuda nisso.
Às vezes, eu acho que há ações premeditadas para fazer com que as pessoas deixem de acreditar nas instituições, de forma a fazer com que tudo fique parecendo igual, como se, na sociedade, fossemos um “bando” sem moral e sem ética. Na em medida que pasteurizamos tudo, também ficamos parecidos.
Esta é uma mentira. Existem segmentos sociais, setores da sociedade civil extremamente comprometidos com a ética, com valores sociais que pressupõe o bem e a coisa pública, que primam pela relação de respeito entre as pessoas.
Embora não acredite em soluções individualizadas, penso que as pequenas coisas que fazemos em nosso cotidiano, em nossa práxis, podem começar a provocar mudanças estruturais em nosso modo de viver e em nosso entorno.
Tem cidadão que não quer reclamar do mínimo: da peça com defeito ou do serviço que não foi executado, por exemplo. Creio que as pequenas coisas dizem muito no que tange aos direitos. São nas pequenas ações, nas pequenas inconformidades, seja do serviço público que não é prestado, do professor que não dá aula, do policial que não te respeita etc. é que as transformações começam.
A tomada de consciência é um processo ligado à experiência, no vivido – como diria o historiador E. P. Thompson. Então, é preciso que cada um se manifeste sobre aquilo que ele não considera correto ao seu redor, tome consciência de que as pequenas coisas que lhe são retiradas, e ele não reagem, é que vão fazendo com que ele fique apático diante das grandes coisas. Em seguida, tome a dimensão do todo, que ele sozinho não pode mudar o mundo, que ele precisa se organizar, participar de algum movimento que transforme qualitativamente a sociedade.
Livro: Ao Soberano Congresso: Direitos do Cidadão na formação do Estado Imperial brasileiro (1822-1831).
Autor: PEREIRA, Vantuil.
São Paulo: Editora Alameda.
488 páginas
Valor: R$ 55,00