No último dia 30 de novembro, o Uruguai vivenciou um momento inédito de sua história: José Mujica ganhava as eleições presidenciais. Pela primeira vez, um ex-guerrilheiro assumiu o cargo máximo de poder no país. Mujica, hoje com 74 anos, integrou o grupo guerrilheiro MNL-Tupamaros, participou de assaltos a bancos e ficou preso durante 14 anos, antes e durante o regime militar uruguaio, ocorrido entre 1973 e 1985.
Embora seja o primeiro ex-guerrilheiro a se eleger presidente da República em uma nação da América do Sul, Mujica não está só. Outros líderes latino-americanos, que hoje ocupam assentos no poder, possuem em suas trajetórias políticas episódios de luta armada contra as ditaduras instaladas em seus países nas décadas de 1960 e 1970. É o caso de Daniel Ortega, ex-guerrilheiro eleito presidente da Nicarágua, em 2006.
Mas o que representa a ascensão desses personagens ao poder? Em que medida o passado de militância combativa influencia o resultado nas urnas de um processo eleitoral democrático? Que aspectos da conjuntura política latino-americana permitiram a eleição desses ex-guerrilheiros? Para responder a essas e outras questões, o Olhar Virtual conversou com Arthur Bernardes do Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-RJ e pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ, e Fernando Luiz Vale Castro, professor-adjunto de História da América do Departamento de História da UFRJ e pesquisador do Programa de Estudos Americanos (PEA) do Ifcs.
“Mujica afirmou que ‘é preciso escutar os que discordam de nós’. São palavras de um político astuto e pragmático, distanciando-se em muito do estereótipo do guerrilheiro intransigente e ‘cego’ por seus dogmas políticos.”
“A chegada de um personagem político como Mujica ao poder no Uruguai é positiva em diversos aspectos. Em primeiro lugar, olhando do ponto de vista estritamente uruguaio, o episódio demonstra a maturidade política do país, sem dúvida, um exemplo a ser seguido em termos de sua estabilidade institucional. O Uruguai, assim como seus vizinhos, passou por governos militares (1973-1985), mas se redemocratizou. Inicialmente, alternavam-se no poder dois partidos tradicionais, com tendências à centro-direita: o Partido Nacional (Blanco) e o Partido Colorado. Contudo, paulatinamente, uma coalizão da esquerda progressista conhecida como Frente Amplia foi ganhando espaço nas urnas, até eleger Tabaré Vásquez, seu candidato, como presidente em 2004. Mujica foi ministro de Tabaré e representou essa mesma frente nas recentes eleições. O fato de essas múltiplas transições de poder – dos militares para os civis; dos partidos tradicionais para os progressistas; da centro-esquerda para o governo de um presidente com um passado guerrilheiro – terem ocorrido sem sobressaltos golpistas é prova cabal da efetiva democratização do Uruguai. Para a integração da América do Sul, o resultado é positivo também, pois os partidos tradicionais (Blancos e Colorados) tendiam a privilegiar um alinhamento automático com os Estados Unidos, em detrimento do Mercosul. Já o governo da Frente Amplia – antes com Tabaré, agora com Mujica – tendeu e tenderá a privilegiar a aproximação com seus vizinhos sul-americanos.
Normalmente, em uma democracia, o extremismo político tende mais a fechar portas do que a abri-las. Embora seus passados lhes sirvam de ‘credencial’ perante certos públicos, os ex-guerrilheiros que chegam ao poder só conseguiram se reinserir na vida política de seus países ao buscar o centro do espectro político, muito mais interessados em desvincular-se do perfil extremista do que em valer-se dele. O caso de Mujica é emblemático, pois foi eleito deputado, senador e, no governo de Tabaré Vásquez, ministro da Agricultura. Neste sentido, reinventou-se como um político que busca a mudança por dentro do ‘sistema’, em vez de militar por uma ruptura revolucionária mais drástica e repentina, nos moldes tradicionais, com a tomada do poder através de luta armada. Atualmente, Mujica adota uma retórica de conciliação e de aproximação com adversários políticos e opositores ao governo. Logo após ser eleito, por exemplo, afirmou que “é preciso escutar, em primeiro lugar, os que discordam de nós, porque têm suas razões e são parte da realidade. São palavras de um político astuto e pragmático, distanciando-se em muito do estereótipo do guerrilheiro intransigente e ‘cego’ por seus dogmas políticos.
A ascensão de personagens políticos como Mujica deve ser entendida a partir de dois contextos: um regional e outro nacional. No âmbito regional, a América Latina, e principalmente a América do Sul, iniciou o século XXI diante de um claro dilema: mesmo após adotar boa parte da cartilha neoliberal, o crescimento econômico não era satisfatório e as desigualdades sociais se aprofundavam cada vez mais. Além disso, uma atroz sucessão de crises se abateu sobre os governos do continente, como o caso da Argentina, que ilustra o fato melhor do que nenhum outro. Essa frustração da população sul-americana com as promessas não cumpridas pelos governos que se encontravam no poder se manifestou nas urnas. A insatisfação popular se materializou na vitória de candidatos que propunham mudanças políticas e econômicas que os grupos que tradicionalmente detinham o poder não foram capazes ou simplesmente não estavam dispostos a implementar, como um foco maior em programas sociais e em políticas de redistribuição de renda. Foi a partir dessa ‘onda’ de governos progressistas de esquerda ou de centro-esquerda que foram eleitos Hugo Chávez, na Venezuela (1999); Ricardo Lagos (2000) e Michele Bachelet (2006), no Chile; Lula da Silva, no Brasil (2002); Néstor Kirchner (2003) e Cristina Kirchner (2007), na Argentina; Evo Morales (2005), na Bolívia; Rafael Correa (2007), Equador; Tabaré Vásquez (2005), no Uruguai. Tendo uma clara proposta de dar continuidade ao governo de Tabaré, Mujica é também fruto dessa mesma onda progressista sul-americana. Cada um desses casos é influenciado por essa tendência regional, mas obviamente também por fatores domésticos que tornaram possíveis essas mudanças de paradigmas.
Fernando Luiz Vale Castro
Professor-adjunto de História da América do Departamento de História da UFRJ e pesquisador do Programa de Estudos Americanos(PEA)do Ifcs
“Os ex-guerrilheiros, desde a década de 1980 inseridos na política continental pelo viés da legalidade e legitimidade eleitorais, tornaram-se nomes fortes para estabelecerem mudanças que são necessárias para a América Latina.”
“Pode-se entender tal processo por meio de uma dupla explicação, que, de certa forma, se complementa. A primeira reside no fato de que a pretensa democracia política, que, sabemos, ainda não foi plenamente alcançada no continente, esteve atrelada a um contexto internacional de valorização dos pressupostos neoliberais que representam, em síntese, a manutenção de uma dependência econômica, bem como da permanência de mazelas sociais que fazem parte da história latino-americana. O segundo aspecto pode ser pensado no próprio amadurecimento de algumas práticas democráticas, em especial, a participação eleitoral mais consciente que, mesmo ainda estando longe do ideal, tem possibilitado certa renovação no jogo político do continente.
A historiografia caracteriza a América Latina independente como uma região marcada por uma cultura política de forte viés autoritário, tendo a sociedade civil apresentado uma tendência a se submeter a estados fortes, centralizadores e militaristas. Os regimes militares da segunda metade do século XX, apesar das diferenças existentes, seguiram certo padrão marcado pela dissolução de instituições democráticas, falência dos partidos políticos tradicionais e militarização da vida política e social apoiada na Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e na violação dos Direitos Humanos. Neste cenário, a luta armada, através de guerrilhas, como mecanismo de resistência a esses regimes, passou a ser uma forma de luta absolutamente explicável e que marcou a América Latina nas décadas de 60 e 70.
A partir dos anos 80, com as anistias ocorridas com as redemocratizações, se observa a entrada dos ex-guerrilheiros na cena política, buscando pela via eleitoral e/ou institucional a inserção na política de seus respectivos países. Na última década, observamos uma ascensão desses políticos. Todos eles têm, portanto, trajetória longa no jogo político de suas nações, objetivando manter, dentro do possível, certa coerência com o passado de lutas e de defesa de uma ideologia que podemos genericamente definir como sendo de esquerda.
Como as estratégias de luta se modificaram, seus ideais e projetos políticos também sofreram mudanças. Isso é natural e absolutamente compreensível. Entendo a política como ‘a arte do possível’. Pode-se pensar então que houve ajuste a uma realidade diferente dos anos 60 e 70, em que se vivia em um contexto marcado, internamente, por ditaduras extremamente violentas e, externamente, pela bipolarização, sendo os regimes militares desdobramentos desse cenário. Atualmente, com a globalização e o estabelecimento de um contexto internacional com forte tendência multipolar, os objetivos não podem ser os mesmos.
São dois os pontos comuns entre as propostas centrais formuladas por esses atores políticos. O primeiro reside na luta por um nacionalismo latino-americano. A questão nacional é ponto comum em grande parte da retórica desses políticos. Um nacionalismo que se traduz em uma crítica, em uma luta contra determinados aspectos do neoliberalismo. Isto pode ser observado, por exemplo, pelas críticas, desde fins dos anos 80, de Alí Rodriguez Araque (ex-guerrilheiro venezuelano e atual ministro da Economia e Finanças do governo Hugo Chávez), em relação à questão do petróleo e às privatizações. O outro aspecto relaciona-se com a integração de grupos sociais historicamente excluídos e que, inegavelmente, vem ganhando espaço nas novas políticas sociais. Talvez o maior exemplo disso seja o caso boliviano com a integração de comunidades indígenas. Não nos esqueçamos de que a principal bandeira de luta de Álvaro Garcia Linera - matemático e sociólogo, antigo integrante do grupo Células Mineiras de Base e do Exército Guerrilheiro Túpac Katari (EGTK), atualmente vice-presidente boliviano - sempre foi a questão indígena.
Hoje, o maior desafio da América Latina é a defesa do Estado Democrático de Direito, ainda não consolidado plenamente. Permanece a ameaça de um recrudescimento do militarismo. No entanto, esse perigo não se relaciona apenas com a ascensão de ex-guerrilheiros, e sim com a manutenção de uma cultura política autoritária em praticamente todos os setores políticos e sociais. Há urgência por mudanças mais significativas na política e na sociedade latino-americanas. Dentro dessas alternativas, os ex-guerrilheiros, desde a década de 1980 inseridos na política continental pelo viés da legalidade e da legitimidade eleitorais, tornaram-se nomes fortes para estabelecerem mudanças que são necessárias para a América Latina.”