Estudos realizados pela Agência Nacional de Pesquisas sobre Aids da França confirmaram que a circuncisão pode ser uma alternativa na prevenção do vírus HIV, já que reduz a transmissão heterossexual em 60%. Isso evitaria dois milhões de novos infectados na África subsaariana, em um período de dez anos.
No entanto, vale ressaltar que a cirurgia não evita a contaminação pelo vírus da Aids, apenas diminui o risco de infecção masculina pelo HIV através da diminuição de áreas que contém receptores específicos do vírus e pela redução das lesões no freio do pênis, sejam elas traumáticas ou causadas por outras doenças sexualmente transmissíveis.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) já aprova o método como medida preventiva. No Brasil, não há perspectiva de que o governo adote essa prática, que poderá ser empregada nas regiões mais pobres, onde a incidência de contaminação é maior. Entretanto, os médicos afirmam que a camisinha ainda é a melhor solução.
Apesar de os dados sobre a incidência do vírus estarem "desacelerando", segundo o relatório publicado pelo Programa das Nações Unidas contra a Aids (Unaids) em maio de 2006, as proporções epidêmicas ainda são graves na África subsaariana. Com pouco mais de 10% da população mundial, essa região abriga cerca de 24,5 milhões de infectados, quase dois terços dos portadores de HIV em todo o mundo.
A circuncisão data pelo menos 2.300 anos a.C. e, para diversos grupos étnicos, é um ritual que simboliza a passagem da infância à idade adulta, bem como uma relação de transcendência do homem com o plano espiritual. Na África, a circuncisão é adotada, em média, por 67% dos homens, porém, em muitos países do continente há uma forte resistência a essa prática, por motivos culturais e religiosos.
Para explorar o assunto, o Olhar Virtual conversou com Amilcar Tanuri, professor do Instituto de Biologia da UFRJ, que trabalhou no Global AIDS Program (GAP), atuando no combate ao HIV/AIDS na África subsaariana. E com Ilana Strozenberg, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, especialista em antropologia social.
“Embora a circuncisão tenha provado ser um método eficiente na prevenção do vírus da Aids, alguns questionamentos surgem em função dessa medida. Um adulto circuncidado, por exemplo, pode sofrer alterações no comportamento sexual. Vale ressaltar que as primeiras pesquisas foram feitas em grupos muçulmanos, acostumados a essa prática e com um estilo de vida bem diferente da cultura ocidental.
Antes do processo de colonização, em certos países, a circuncisão era bem difundida pelas populações nativas, no entanto, os colonizadores apontaram aquilo como uma barbárie e a tradição foi se perdendo. Hoje, a circuncisão não é bem aceita em diversas comunidades. Por esse e outros motivos, fazer a cirurgia em larga escala na África é muito complicado.
Essa taxa de redução de transmissão do vírus em 60% é muito significativa se pensarmos em termos globais. Há, porém, entre outras questões, o problema da logística, pois o risco de infecção hospitalar e tétano é muito grande. Além disso, na primeira fase a circuncisão protegeria, diretamente, apenas o homem.
Há outras alternativas de prevenção, a exemplo dos microbicidas, uma pasta que deve ser aplicada diretamente na vagina e contém substância antiviral, inibidora do vírus da Aids ou de outros agentes patogênicos. Os estudos dos microbicidas estão bem adiantados, cinco ou seis compostos já estão sendo testados nos Estados Unidos, Europa e África. Isso comprova que a indústria farmacêutica vem investindo em tecnologias de prevenção, entretanto, os maiores investimentos dessas empresas são voltados para os tratamentos.
O tratamento profilático é outra novidade e consiste em tratar pacientes HIV negativos com coquetéis anti-AIDS, para evitar uma possível contaminação. Acredito, em termos de saúde pública, que essa medida seja inviável. Na África, por exemplo, todas as pessoas sexualmente ativas teriam que ser prevenidas, pois o risco de contaminação no continente é enorme.
No Brasil, os HIV positivos têm acesso gratuito às drogas e também aos testes laboratoriais para acompanhar o tratamento, basta se apresentarem no Sistema Público de Saúde (SUS) e fazerem o teste. É importante destacar que as pessoas em tratamento diminuem o risco de transmissão do vírus, pela diminuição da carga viral e a maior exposição a medidas de prevenção. O país vem mostrando grande empenho na produção de genéricos e por todos os esforços é visto como um modelo a ser seguido no combate e tratamento da Aids”.
“Do ponto de vista da antropologia social, a prática da circuncisão que existe em algumas tradições culturais milenares não pode ser compreendida se reduzida a motivações de ordem médica e pragmática. Considerar que essas práticas podem ser explicadas, prioritariamente, em qualquer contexto, como meio de prevenção de doenças é pressupor a universalidade dos valores e princípios que regem a sociedade ocidental moderna. Ora, as noções de corpo, de saúde, de doença, assim como as relações entre vida e morte são construções culturais e não concepções universais.
A circuncisão, como outras práticas de modificação corporal, é um ritual simbólico através do qual as sociedades imprimem, no corpo dos indivíduos, a marca de uma identidade cultural coletiva. Existem exemplos dessas práticas em todas as sociedades humanas: escarificações da pele, pinturas corporais, tatuagens, uso de objetos que perfuram e são incrustrados no corpo, são elementos de um código simbólico através do qual algo é afirmado a respeito do indivíduo e seu lugar na sociedade. Através deles se evidenciam semelhanças e pertencimento, assim como diferenças e fronteiras no universo social.
Os judeus, por exemplo, são circuncidados por conta de uma razão simbólica que não tem explicação lógica. Para eles, a circuncisão simboliza, no plano da transcendência, um pacto entre a humanidade judaica e Deus.
O significado de cada uma dessas práticas e rituais corporais, no entanto, não pode ser entendida senão no contexto cultural em que estão inseridas e no qual ganham significado. A circuncisão praticada por decisão médica, seja com fins preventivos ou curativos, se insere na lógica da ciência contemporânea e seus significados devem ser buscados nas motivações e interesses de diversas ordens que motivam a sua adoção"