Com a fala pausada, Joel Rufino dos Santos começa a explicar seu mais recente livro, Quem ama Literatura não estuda Literatura. Professor aposentado pela Faculdade de Letras da UFRJ, Joel conta que a obra, pautada em sua experiência pessoal como docente universitário, pretende lançar um olhar crítico sobre o ensino de Literatura no país.
Amante de títulos provocativos, o professor, autor de livros como Quando voltei, tive uma surpresa e O soldado que não era, censura o distanciamento existente entre os assuntos abordados pelos cursos de Letras e os gostos individuais dos alunos. Para Joel, ao ignorar autores e narrativas literárias populares, a universidade acaba por apartar os jovens estudantes de sua realidade, gerando desestímulo entre eles.
Entusiasta da inserção do estudo de telenovelas, das histórias em quadrinhos e do cordel nas ementas dos cursos, o historiador e romancista acredita que a desigualdade social verificada na sociedade brasileira resvala também para a Literatura. “Essa desigualdade se reflete também na vida intelectual, e, portanto, na produção literária e no ensino de Literatura”, afirma. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Olhar Virtual: No livro, o senhor aponta que, no Brasil, o modo de lecionar Literatura é quase infrutífero. Em que o senhor se baseia para fazer tal afirmação?
Infrutífero completamente esse ensino não é. Mas tem graves deficiências e precisa ser melhorado. Sou um militante da causa de melhorar o ensino universitário de Literatura. Sou professor e me sinto comprometido com isso.
Olhar Virtual: Como o ensino deveria ser?
Ele deveria prestar mais atenção ao aluno. No meu livro, sugiro que o abandono do aluno na universidade, seja qual for o curso dele, é um aspecto do abandono do povo brasileiro por parte das elites pensantes e das elites econômicas do país. Então o que temos nas faculdades de Letras do país é um “dar as costas” ao aluno. Se quisermos melhorar a universidade, temos que dar a frente aos alunos.
Olhar Virtual: Como a universidade dá as costas ao aluno?
Ela não considera o gosto do aluno. Claro que há várias metodologias, há professores com diversas concepções de Literatura, mas eu falo do conjunto. No geral, o gosto do aluno é ignorado nas ementas, nos currículos, nas linhas de pesquisa, nas bibliografias. O ensino de Literatura fica então um pouco impositivo e socialmente insatisfatório. O gosto do aluno é encarado como um gosto de massa. Esse gosto precisa ser criticado e não apenas desprezado. Para criticar, é necessário que o professor ouça o gosto do aluno e leia o que o estudante lê.
Olhar Virtual: Em outros países o ensino de Literatura é diferente?
Na França, sempre um modelo de cultura intelectual e vida acadêmica, por exemplo, há um pouco mais de variação teórica e, por isso, talvez o gosto e o respeito ao aluno existam. Creio que na Argentina o ensino de literatura também está mais próximo do aluno
Olhar Virtual: Quais as conseqüências desse distanciamento? Ele causa um desestímulo no aluno das faculdades de Letras?
Acho que sim. Desestimula o aluno e diminui a estima em torno dos cursos de Letras em geral. Muitos jovens estudantes só cursam Letras porque não conseguem ingressar em outras faculdades. Ora, isso é uma desestima, uma subestimação da Literatura e dos cursos de Letras. Além disso, os próprios professores se sentem muito desestimulados e caem no que eu chamo no meu livro de niilismo, ou seja, a idéia de que nada vale a pena, a descrença de que qualquer atitude pode mudar a realidade.
Olhar Virtual: Que fatores poderiam explicar as falhas do ensino brasileiro de Literatura?
Existem explicações próximas e outras mais distantes e profundas. Uma explicação próxima é a subserviência do ensino de Literatura a teorias escapistas, alienadas e individualistas de Literatura. Há uma domesticação do ensino da Literatura. Uma razão mais profunda é a própria desigualdade social característica da sociedade brasileira. A tendência da sociedade brasileira é concentrar tudo nas mãos de uns poucos e nada nas mãos de muitos. Essa desigualdade se reflete também na vida intelectual, e, portanto, na produção literária e no ensino de Literatura.
Olhar Virtual: O senhor acha que a academia brasileira é apartada do mercado editorial? Autores, como Paulo Coelho, por exemplo, devem ser estudados nas universidades?
O caso Paulo Coelho é um caso espetacular. Nunca é bom racionar com um caso espetacular, mas se quisermos, podemos. Ele é solenemente ignorado pelas faculdades de Letras, o que seria insignificante se ele não fosse simplesmente o escritor mais lido da Literatura brasileira até hoje. Os professores deveriam lê-lo também e, a partir daí, produzir a crítica, mostrando aos alunos porque ele é um autor ruim. Ele é ruim, mas não se pode decidir isso de antemão. Só podemos decidir se o conhecermos. Assim como ele, existem autores da Literatura brasileira que foram excluídos da universidade. São bons autores apesar de serem de entretenimento, como Jorge Amado. É como se tivesse uma regra não explicitada: quanto mais lido um autor, menos ele presta.
Olhar Virtual: Que vantagens o estudo da telenovela, das histórias em quadrinhos, do cordel, dos causos e dos romances vendidos em bancas de jornal poderia trazer para o aluno?
Traria o benefício crítico na medida em que aguçaria o senso crítico do aluno. Poderia se comparar, por exemplo, os autores de proposta com os autores de telenovela. A ampliação do espectro analisado permitiria um aumento do espírito crítico. Outro benefício seria o de situar cultural e sociologicamente esses gêneros de massa, como as novelas e a música popular. O estudante de Letras só teria a ganhar.
Olhar Virtual: O senhor dedica boa parte de seu livro ao que chama de perturbadores do sono do mundo, ou seja, pensadores ocidentais, entre eles Freud e Darwin. Qual a relação desses autores com a Literatura?
A relação é direta e essencial. A Literatura é um capítulo da cultura. Para você estudar esse capítulo é bom conhecer outros, como História, Genética, Física, Filosofia. É nesse sentido que aponto quatro pensadores, Freud, Darwin, Marx e Einstein, essenciais para se entender a cultura na qual a Literatura se insere.
Olhar Virtual: Na sua opinião, qual a função da Literatura?
Essa pergunta pode ter várias respostas complementares ou excludentes. A minha resposta é que a Literatura serve para iluminar o mundo e dar àqueles que têm um compromisso ético com a felicidade humana formas de agir. Em uma forma mais sintética, a “Literatura serve para dizer aquilo que simples fatos não dizem”, como disse Lima Barreto.
Olhar Virtual: No livro, o senhor afirma que a religião é um estado da Literatura. Como isso?
Num certo sentido, a religião tem a mesma natureza da Literatura. Ambas possuem a capacidade de transcender à vida, para sair dessa realidade. Ambas servem como forma de escape. A religião, a meu ver, é uma forma de escape que se conforma com o mundo. Já a Literatura exprime a possibilidade de realizar as potências humanas nesse mundo.
Olhar Virtual: O título do seu livro é “Quem ama Literatura não estuda Literatura”. Diante dele, podemos dizer que os alunos de Letras não gostam de Literatura?
Eu sempre gostei de títulos provocativos; às vezes funcionam, outras vezes não. Esse parece que está funcionando. Com o título, eu já estou dizendo alguma coisa. O que eu quero dizer? É que quem estuda Literatura não necessariamente ama a Literatura. Conheci muita gente que estuda, mas não ama. É possível também você amar literatura sem se sentir estimulado a estudá-la.
Olhar Virtual: O senhor define o livro como uma espécie de testamento. Qual a principal contribuição da obra para as gerações futuras de professores e de alunos de Literatura?
Não tenho a pretensão de que esse livro deixe legado para gerações futuras. Esse livro, daqui a algum tempo, vai ficar esquecido e enterrado, até porque é um ensaio e não um manual. Mas ficarei satisfeito se souber que alguém com um perfil do aluno que tive na Faculdade de Letras da UFRJ pôde se sentir apoiado. Se meu livro convencer essa pessoa de que vale a pena estudar Literatura, estarei feliz.