Em 2008, completou-se o centenário da morte do escritor Machado de Assis. Para lembrar a data, a UFRJ realizou a “Jornada Discente Machado de Assis”, procurando dar espaço a alunos para mostrarem suas visões sobre o tema. Desse evento, surgiu o livro Jornada Discente Machado de Assis: melhores artigos.
O Olhar Virtual conversou sobre o assunto com o professor da Faculdade de Letras Dau Bastos, organizador do livro, que será lançado no dia 8 de setembro, no auditório G1 da Faculdade de Letras.
Olhar Virtual: Como surgiu a ideia de produzir o livro?
Dau Bastos: Em 2008 a UFRJ decidiu se unir  à UERJ e à UFF para promover o I Seminário Machado de Assis, aberto a  pesquisadores de instituições brasileiras e estrangeiras. Acontece que, devido  à grande afluência de estudiosos a iniciativas com essa envergadura, as conferências  e comunicações se limitariam a pós-graduandos e
  professores. Então resolvemos organizar a “Jornada Discente  Machado de Assis”, realizada dois meses antes na própria Faculdade de Letras da  UFRJ e aberta também a graduandos. O evento contribuiu para democratizar as  comemorações em torno do centenário de morte do escritor e preparar nossos  estudantes para tirar todo o proveito do acontecimento. A jornada se mostrou  bem acima de nossas expectativas, pois, mesmo sabendo do grande interesse dos  jovens pelo autor de Dom Casmurro,
  fomos surpreendidos com o aparecimento de um público de aproximadamente  500 pessoas, que assistiram a um total de 49 comunicações, entre as quais  muitas de alto nível. Entusiasmado, o setor de Literatura Brasileira formou uma  comissão editorial composta de mestrandos e doutorandos, à qual coube  selecionar os trabalhos merecedores de publicação. O livro se faz de 29 artigos  dignos de atenção e, além de coroar o processo de reflexão sobre uma das obras mais  ácidas e experimentais de que a humanidade já teve notícia, integra o esforço,  feito com crescente intensidade em nossa faculdade, de fomentar a emergência de  novos ensaístas e editores.
Olhar Virtual: Machado de Assis é, talvez, o escritor brasileiro mais estudado. Por que ocorre essa grande multiplicidade de interpretações de sua obra?
Dau Bastos: Machado é o autor nacional com fortuna crítica mais vasta porque deixou uma  obra continental, cujas diferentes faces se irmanam pela excelência. Os  escritos em verso poderiam ser seu Tendão de Aquiles, mas mesmo entre eles há  composições que integrariam qualquer antologia completa da poesia brasileira.  As peças teatrais somam
  poucas, porém menos por falta de competência do dramaturgo  do que pelo fato de as plateias de então não conseguirem apreciar seu humor  fino. No terreno da análise literária, o carioca simplesmente fundou a crítica  nacional, que era de uma incipiência constrangedora e, a partir de suas  propostas e apreciações, deu um verdadeiro salto em
  termos de conhecimento e consciência. Finalmente, a  combinação de ficção, filosofia e investimento na linguagem – registrada  sobretudo a partir de Memórias póstumas  de Brás Cubas (1881) – resultou na equiparação do romance tropical à melhor  prosa planetária até os nossos dias.
Portanto, o prestígio corresponde à produção. Agora, não há  dúvida de que o desencanto  com o ser  humano foi essencial à permanência do autor. Hoje, quando a falta de  consistência ética e o fim das utopias nos empurram ainda mais para o niilismo,  a crueza da visão de mundo detectável na obra machadiana se mostra de uma  atualidade
  impressionante. Resta a torcida para que curtamos os  escritos e, ao mesmo tempo, aprendamos com o escritor a encarar o vazio como  desafio à criação. Esta foi levada tão a sério que, além de lapidar o texto à exaustão,  Machado cultivou a ambiguidade e outros recursos que, ao colocarem em xeque as  verdades assentes e multiplicarem as
  possibilidades de interpretação, potencializam a fruição  estética e estimulam o exercício do senso crítico. 
Olhar Virtual: O livro é feito de textos escritos por alunos. Qual a diferença que isso gera?
Dau Bastos: A meu ver, as faculdades e institutos de Letras vivem dois grandes paradoxos. O mais evidente diz respeito à falta de tempo dos professores em atender a todas as demandas de textos para livros organizados por colegas, revistas especializadas e suplementos literários, ao mesmo tempo em que graduandos e pós-graduandos precisam ser não somente competentes mas muito atirados para conseguir publicar alguma coisa. Como resultado, encontramos colegas estafados e alunos frustrados. Uma possível solução é criar meios de os estudantes se lançarem como autores, preferencialmente em projetos nos quais aperfeiçoem a relação com o gênero ensaio e se familiarizem com os procedimentos editoriais, da escolha de originais às diferentes etapas da revisão.
Para avançar neste sentido, contudo, precisamos ter a  coragem de enfrentar a contradição menos focalizada, mas talvez vexaminosa: os  alunos de Letras escrevem e reescrevem muito  pouco. Compreende-se que algumas disciplinas necessitem de tal maneira da  fixação de certos conteúdos que se contentem com a aplicação de provas. Mais  difícil é entender que a abordagem do texto que o ser humano costuma mais
  reelaborar – a poesia e a prosa de ficção – se faça em cem  minutos, durante os quais o avaliado produz um jato que, por mais coerente e coeso  que seja, jamais fará jus ao objeto analisado. As turmas de graduação costumam  ser muito numerosas e os professores se desdobram em atividades de extensão e  pesquisa. Mas sou favorável a que lutemos para encontrar meios de antecipar a  forma de avaliação da pós, ou seja, que já nos primeiros períodos o aluno se  habitue a escolher um tema, sobre o qual pesquise, discuta, escreva e  reescreva. Assim, aumentarão as chances de o corpo discente publicar, ampliando  o número de livros e periódicos, para enriquecimento da produção acadêmica como  um todo.
Por fim, estou convencido de que os estudantes de hoje escrevem melhor do que em meus tempos de universitário. Com isso não digo avistar uma profusão de gênios – categoria, de resto, anacrônica –, e sim que, devido a fatores como liberdade de expressão, recursos da informática e cobrança que o mundo faz de que nos comuniquemos por escrito, a média dos textos de graduandos e pós-graduandos é muito boa. Quem duvidar do que digo que abra nosso livro.
Olhar Virtual: Machado morreu há um século. Você compartilha da visão de que ele ainda é o maior expoente de todos os tempos da literatura brasileira?
Dau Bastos: O  campo da criação não se faz de raciocínios categóricos e afirmações  superlativas. Não há dúvida, porém, que Machado de Assis e Guimarães Rosa constituem  uma espécie de viaduto que, iniciado no momento em que o romance se consolidava  em nosso país, desemboca na atualidade, sobre cuja produção ficcional lança uma  sombra que somente a ignorância ou a má-fé impede de ser percebida.  Evidentemente, precisamos levar em conta que, além de talentosos e tenazes, os  dois
  encontraram condições ideais de levar a cabo seus  respectivos projetos. O primeiro fez uso de tudo o que a humanidade havia desenvolvido  na esfera das letras desde a Antiguidade grega até seus dias. O segundo  associou a esse legado as inovações vanguardistas. Por sorte, tivemos também  Oswald de Andrade, que propôs resgatarmos o canibalismo com que nossos índios  se tonificavam. Assim, ao reconhecermos a importância avassaladora de Machado e  Guimarães como prosadores, pensamos em ambos menos como motivo de complexo do  que como fonte de força. 
Olhar Virtual: A obra de Machado tem uma grande ligação com o Rio de Janeiro. Como é a ligação da UFRJ com a obra machadiana?
Dau Bastos: A  UFRJ cuida muito bem do autor, que figura como um dos pontos altos das  disciplinas de graduação voltadas para a ficção nacional e, em nível de  pós-graduação, não para de ser trabalhado em cursos, dissertações e teses. As  reflexões se desdobram em outras produções, a exemplo dos eventos e do livro de  que tratamos aqui,
  assim como das três novas obras que docentes da Faculdade de  Letras publicaram por ocasião de seu centenário de morte.