Na semana em que se comemorou o Dia Nacional do Índio, 19 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu uma ação da Polícia Federal para a desocupação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Há 30 anos, ela vem sendo ocupada desordenadamente por não-indígenas (arrozeiros), que se recusam deixar a região sob a alegação de que a demarcação favorecerá à internacionalização da área.
Em 1998, o governo federal fez a demarcação das terras, porém a falta de homologação impediu que os mais antigos e tradicionais habitantes, os índios das etnias taurepang, macuxi, wapixana, ingarikó e patamona, pudessem efetivamente ocupá-las. Em 2005, uma nova demarcação, desta vez acompanhada de homologação, foi realizada pelo governo. A região, com 1,7 milhões de hectares, localiza-se no extremo norte do estado e faz fronteira com a Guiana e com a Venezuela.
No início do mês abril deste ano, a luta se acirrou e os conflitos aumentaram em função do princípio das operações de desocupação da área. Segundo especialistas, a situação da região é complexa e a decisão do STF é uma tentativa do Governo Federal de construir consenso com o Estado de Roraima, desfavorável à decisão da União.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma que processo de regularização fundiária das terras, em favor da posse dos índios, não compromete a soberania do país e afirma, ainda, que o governo não mudará a política indigenista que vem adotando. Já para as forças armadas brasileiras, a iniciativa figura uma ameaça à segurança nacional, na medida em que deixa desprotegidas as fronteiras do país, favorecendo possíveis invasões de potências estrangeiras.
Para debater a questão, o Olhar Virtual entrevistou José Pádua, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), e Antônio Carlos de Souza Lima, do Museu Nacional, que redigiu em conjunto com o presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Luís Roberto Cardoso de Oliveira, uma nota-artigo sobre o caso. Confira.
A Associação Brasileira de Antropologia vem se juntar ao conjunto de entidades das sociedades civil e política brasileiras no sentido de defender a homologação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em área contínua, com ações de retirada de ocupantes não–índios (seis arrozeiros!), conforme decreto do primeiro Governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva o estabelece, consoante a defesa da legalidade e dos princípios de um Estado de Direito como consagrados na Constituição de 1988.
Ao longo de seus 50 anos de existência, nossa associação, a primeira sociedade científica na área das ciências humanas no Brasil, e uma das três maiores associações antropológicas no mundo, esteve engajada em numerosas causas sociais, de acordo com o imperativo de responsabilidade moral e ética que impele o antropólogo à defesa dos direitos dos grupos socialmente minoritários com que trabalha, e não nos faltaram momentos para demonstrá-lo, fosse em tempos de regime ditatorial, fosse sob a democracia. Nosso fazer profissional, nosso compromisso moral e ético têm nos colocado diante da situação de agirmos fundamentando as bases da ação de Estado no reconhecimento dos direitos indígenas aos territórios que tradicionalmente ocupam, seja sob a forma de relatórios originados no trabalho de identificação dessas terras, seja sob a forma de laudos periciais para fins judiciais.
É com base no acúmulo de conhecimentos ao longo de mais de duas décadas atuando em processos de identificação fundiária e de um consenso em nossa comunidade sobre as formas cientificamente adequadas de fazê-lo que cremos - com base nos estudos antropológicos idôneos que informam a demarcação já realizada da área Raposa Serra do Sol, ocupada por indígenas macuxi, wapichana, ingarikó, taurepang, patamona, vítimas de toda sorte de violência na região - que a presente situação de violência pode exponencialmente se multiplicar. Repudiamos a morosidade na retirada dos ocupantes não-índios e as concessões políticas feitas a um número de seis indivíduos cujos interesses políticos configuram o que muitos chamam de “estado de Roraima”, na verdade, um estado indígena cuja verdadeira riqueza jaz nas mãos desses 18 mil indivíduos desses povos, cidadãos brasileiros como todos nós. Com base na experiência de nossos associados vimos destacar que os povos indígenas têm sido os mantenedores das fronteiras do Brasil ao longo do período colonial, imperial e republicano, muito antes dos ditos habitantes não indígenas de Roraima e de boa parte da Amazônia terem lá chegado. Tais procedimentos, num pseudo-nacionalismo emanado de vozes militares e civis manifestamente ignorantes do verdadeiro país em que vivemos, são sintomas das imensas desigualdades que marcam, lamentavelmente, o Brasil.
É no sentido de urgir o Governo Federal a agir no interesse da ordem, da lei e da paz e de intervir no sentido de dirimir tais problemas, que a Associação Brasileira de Antropologia se manifesta mais uma vez em nome da democracia, da pluralidade e da verdade científica como bases de uma sociedade mais justa. Fazemo-lo com base na experiência de mais de década de demarcação de terras indígenas em regiões de fronteira, que hoje se encontram mais seguras dada a certeza da presença daqueles que são os primeiros e mais legítimos habitantes de nossa terra.
A ABA coloca-se à disposição para debater e contribuir na direção do pleno reconhecimento dos direitos indígenas.O mais grave da situação não é a resistência local dos fazendeiros e plantadores de arroz que, vale lembrar, ocupam ilegalmente aquelas terras públicas desde a década de 1980. O mais preocupante é a contestação aberta de comandantes ativos das forças armadas, com base em uma pretensa ameaça que a demarcação geraria para a segurança nacional e a estabilidade da fronteira. O fato é que se difundiu nos meios militares, espalhando-se por outros setores da sociedade, uma teoria conspiratória, baseada mais em especulações impressionistas do que em argumentos racionais, que coloca as reservas indígenas como o embrião de uma futura internacionalização da Amazônia.
A defesa dos interesses dos arrozeiros locais, quase de nenhuma base legal, não geraria a crise que estamos vendo. O problema está na confluência dessa resistência com dois outros movimentos de caráter mais amplo: a oposição dos políticos locais de Roraima, prejudicados pela crescente presença do poder federal na ordem fundiária do estado, e a oposição doutrinária dos militares.
O problema está no mito geopolítico que cria uma falsa oposição entre terras indígenas e segurança nacional. A grande ironia está no fato da determinação constitucional em favor das demarcações ter sido fortemente motivada, ao menos de forma implícita, pela idéia de criar um instrumento que aumentasse a presença direta do poder público no caótico cenário fundiário da Amazônia, marcado por grilagens e invasões de terras públicas.
As reservas indígenas, na verdade, aumentam o poder nacional sobre a região, além de promoverem a conservação ambiental e uma organização mais disciplinada da fronteira. São áreas do estado onde o exército entra sem pedir licença, ao contrário das propriedades privadas.
Os problemas reais de segurança na Amazônia estão relacionados com o crescimento do narcotráfico, da ocupação irresponsável e devastadora do território, da guerrilha em países vizinhos, da ilegalidade em seus diversos aspectos. A Amazônia precisa de mais e não de menos poder público.
Mas as terras indígenas se tornaram um alvo mal direcionado. São terras do estado, que reforçam a presença do poder nacional na fronteira e na região. Existem especulações de que elas poderiam servir como desculpa para futuras invasões de potências estrangeiras, com base na defesa de sua autonomia territorial. Mas os argumentos em favor dessa ameaça são superficiais e extremamente forçados. Tal hipótese não faz parte da atual ordem jurídica internacional, exceto através de leituras enviesadas e deturpadas. De toda forma, uma situação de invasão estrangeira na Amazônia só poderia se dar no contexto de uma grande ruptura da ordem internacional.
Para resolver essa questão, é preciso restabelecer a racionalidade do debate, que está muito baseado em dogmas ideológicos. O inaceitável é o rompimento da ordem legal e a recusa das forças armadas em colaborar com as autoridades constituídas no cumprimento da lei. Sem o apoio político nacional, centrado em grande parte no falso argumento das terras indígenas como instrumento de internacionalização, a tendência seria os fazendeiros aceitarem as indenizações e estabelecerem suas plantações em outras regiões do estado.