O pesquisador Adriano Oliveira da Universidade Federal de Pernambuco lançou em agosto o Tráfico de drogas e crime organizado – peças e mecanismos (Juruá Editora), livro resultante da sua tese de doutorado em Ciências Políticas. Nele, Adriano Oliveira conclui, a partir de entrevistas com traficantes e policiais e de análise de inquéritos e processos, que o crime organizado no Brasil é endógeno. Ou seja, nasce no Estado, na esfera pública, para depois alcançar a marginalidade.
Em entrevista ao jornal O Globo de 28 de outubro, Adriano afirma que a principal diferença entre o crime organizado do Brasil e o do resto do mundo é a presença do crime endógeno, em que atores públicos cooperam com as organizações criminosas.
O Olhar Virtual conversou com o professor adjunto da faculdade de Direito, Carlos Eduardo Adriano Japiassu, e com o historiador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Marcos Bretas, para entender o conceito de crime organizado e debater até que ponto esse tipo de criminalidade no Brasil é tão distinto dos outros países.
“Não vejo muita utilidade na criação de um conceito para crime organizado, seja endógeno ou exógeno. Há um tratado internacional sobre crime organizado – a convenção de Palermo. Percebe-se, pelo menos em Direito, uma dificuldade de definir o crime organizado. O Direito faz referência a algumas organizações que não necessariamente atendem a essa definição. Uma quadrilha com muita gente para fraudar licitações, por exemplo, não necessariamente consiste em uma organização criminosa, apenas uma quadrilha. Para ser crime organizado é necessária uma quadrilha, mas há uma série de pré-requisitos. Dentre eles lavagem de dinheiro e estrutura hierárquica. Um desses requisitos fundamentais é a simbiose com o Estado, ou seja, uma relação mutuamente vantajosa entre crime e Estado.
Distinguir endógeno e exógeno é perguntar quem veio antes, o ovo ou a galinha? Quando o pesquisador que desenvolveu esta tese diz “Estado” participante da criminalidade, ele quer dizer funcionários públicos corrompidos. É importante deixar isso claro. Porque, apontar o Estado como principal agente do crime organizado é defini-lo como delinqüente, por financiar a criminalidade: seja o tráfico, o roubo ou até mesmo o terrorismo. O ex-presidente do Paraguai, Noriega, era traficante: era um ditador que financiava o tráfico. Hoje, vemos em alguns países o governo financiar o terrorismo. Não temos nada disso aqui no Brasil. Qual é o grupo criminoso financiado pelo governo brasileiro? Não tem. Temos, sim, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, tráfico de influências... nada muito diferente do que acontece no resto do mundo. Muda mesmo é a intensidade do fenômeno.
Tenho uma visão mal humorada do complexo de vira-lata recorrente no povo brasileiro que aponta tudo aqui no Brasil como se fosse o pior. Porém, vemos que não é esta a situação. Não acho o caso brasileiro particularmente diferente dos outros. Temos algumas peculiaridades. A nossa criminalidade organizada é menos organizada e mais violenta. Se fosse desenvolvida, como se espera, não haveria tanta gente morrendo, porque nada atrapalha mais um bom negócio que atrair a polícia. Nada menos organizado que um menino de 15 anos de idade armado até os dentes mostrando armas para a polícia. Isso não é crime organizado, é homem das cavernas. Ao invés de estar com um tacape, está com uma AR-15 nas mãos.
O Estado brasileiro não é intrinsecamente criminoso. Não foi criado para ser corrupto. Nossa corrupção se deve à recente democracia na história do Brasil. O Estado democrático permite o controle entre as pessoas. Em países com tradição de democracia, o controle é maior e, portanto, a corrupção é feita de forma mais disfarçada. Temos aqui algumas figuras públicas que participam da criminalidade, seja pela cultura ou pela impunidade facilitada por uma série de leis e privilégios assegurados, criando um ambiente propício para a corrupção. É preciso atacar esses espaços não controlados para consolidar a democracia.
Se entendermos quais as causas da criminalidade, podemos encontrar solução. Depois de apontar o Estado como a causa no Brasil, que resta fazer? Reformar o Estado e seus funcionários? Esta é uma questão complexa porque envolve pessoas e caráter. Da mesma maneira que há os bons funcionários públicos, há os maus.”
“O conceito de crime organizado tem origem na discussão da máfia, é pensado em redes de planejamento e de ação criminal e envolve setores diferenciados. Existe uma grande discussão sobre sua aplicabilidade ao tráfico de drogas brasileiro, mas, apesar do apelo emocional deste uso, ele me parece duvidoso. Algumas pessoas defendem que o tráfico de drogas no Brasil é crime organizado, outras defendem o contrário. Eu tendo a achar que não há organização no tráfico de drogas brasileiro. Não existe nele um modelo de máfia, como a italiana. Não há redes de solidariedade profundas, diferente do que muitos pensam. Não há grandes lideranças, pois a toda hora os líderes do tráfico morrem e entram outros em seus lugares.
Diferenciar crime organizado como endógeno e exógeno é válido como uma proposição, a partir desta distinção haverá alguma contribuição para o conhecimento. É importante ressaltar que, quando o pesquisador pernambucano se refere a exógeno ou endógeno, ele está referindo pelo ponto de vista do Estado. Este é um conceito relativo. Depende do ponto de vista. A máfia italiana, por exemplo, também tem nexos com o Estado, compra policiais e juízes. Mas ela é uma organização criminosa capaz de sobreviver sem esse vínculo, devido a sua estrutura de organização criminosa amplamente ancorada na população, sua protetora. Desta forma, acredito que, do ponto de vista da sociedade italiana, a máfia é endógena: depende muito mais da sociedade, que do Estado.
De qualquer maneira, a tese é interessante, chama a atenção para a existência de determinadas redes de organização dentro do aparelho do Estado. Só não podemos pensar que o crime organizado no Brasil seja culpa do Estado. Culpa não é um bom termo. Importa ressaltar o que mais pode se aproximar de um conceito de crime organizado existente no Brasil: o tráfico de armas, que não existiria sem uma participação de agentes do Estado. Nesse sentido, a existência de crime organizado no Brasil passaria pela presença de agentes representantes do Estado como atores essenciais para sua existência.
A participação do Estado neste crime se dá pelo comprometimento direto e central, em ações criminais dos próprios agentes do Estado, como policiais e magistrados. Sem eles, as condições de sobrevivência destas estruturas criminais estariam fortemente ameaçadas. Isso pode ser comparado com o tráfico de drogas, que por sua natureza pouco organizada sobrevive pontualmente sem esse tipo de conexão – ou melhor – sobreviveria mesmo à desaparição deste tipo de conexão com os agentes de estado, ainda que se beneficie dela”.