Entrelinhas

Uma lição de vida

 

 

Pedro Barreto

Foto:Bárbara B. Novaes

Olhos marejados, fala embargada e alguns segundos de pausa. A emoção toma conta de Alberto Claudio dos Santos ao falar do falecido irmão, com quem viveu uma relação difícil na juventude. “Nos reaproximamos quando ele estava no hospital, tentando se tratar de um câncer. Eu ficava ao lado dele... voltamos a conversar. Mas o tempo foi curto”, conta com dificuldade.

O irmão Jorge foi um dos homenageados do livro Escombros (Mangava Gráfica Editora, 2010), lançado no último dia 16, no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. O autor, conhecido pelos ex-companheiros como “seu” Claudio, aposentou-se recentemente, após 21 anos de serviços prestados à universidade como diretor do Alojamento dos Estudantes, funcionário da Escola de Serviço Social e, nos últimos anos, da Decania do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFRJ. Aos 64 anos, o autor diz que resolveu escrever o livro para ajudar “os meninos que vivem no abandono, que acham que não vale a pena estudar e ser uma pessoa decente”.

“Seu” Claudio foi morador da extinta favela da Catacumba, que margeava a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio. “Por volta das 5h da manhã, ouvimos a chegada da Polícia, com cães e caminhões da companhia de limpeza urbana. Eles começaram a escrever um ‘x’ nos barracos que deveriam ser abandonados”, recorda.

Já morando na nova casa, no bairro de Brás de Pina, Zona Norte do Rio, entrou para a UFRJ e conheceu o movimento negro através do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (Sintufrj). “Tive acesso a esse conhecimento, digamos, formal. Também ajudei a organizar eventos de incentivo à cultura negra”, destaca, explicando a origem da consciência social e do discurso articulado.

Sem pretensões literárias ou acadêmicas, a obra é um relato sincero, corajoso e emocionado do cidadão carioca, negro e ex-favelado. “Dormi na rua, passei fome, mas, apesar de tudo, dei a volta por cima. Hoje, tenho casa própria, criei os filhos com muita dificuldade – duas delas na universidade – e entrei na luta contra o racismo e a intolerância”, resume no prefácio do livro.

O que o motivou a escrever?

Quis escrever para essa juventude que está aí, para esses meninos que vivem no abandono, que acham que não vale a pena estudar e ser uma pessoa decente. Então essa foi a minha intenção: mostrar a minha vida para que ela sirva de exemplo.

Fale um pouco sobre as histórias que estão no livro.

Chegando à universidade, fiquei conhecendo esse mundo que era novo para mim. Inicialmente, fui trabalhar no Alojamento dos Estudantes, lidando com os jovens, com muitos problemas, a gente vê que não só os pobres têm problemas. Mas também os estudantes de uma camada social mais elevada. Vendo aquela situação de alguns estudantes usuários de drogas, comecei a rever a minha vida.
Nasci na Favela da Catacumba, perdi meus pais aos três anos de idade. Aos quatro, minha tia, que não podia ficar comigo, me mandou para um internato. Fiquei lá até os 16. Passei por poucas e boas. Sou canhoto e não me deixavam escrever com a mão esquerda, me forçando a usar a direita. Além disso, a gente apanhava muito no colégio, havia muitos casos de pedofilia. Comigo, graças a Deus nunca aconteceu, mas a gente via os inspetores pegando os meninos mais “bonitinhos”... tudo na nossa frente.

O senhor perdeu o estímulo para estudar?

Sim. Eu passei a ter raiva do estudo por conta dessa obrigação de escrever com a mão direita. Dessa forma, não consegui mais ficar naquele colégio. Eu queria, mas era muito difícil. Até porque, naquela época, você aprendia tabuada com sabatina. “Abre a mão”, e lá vinha palmada. Quando eu saí do colégio, aos 16 anos, voltei para a favela sem ter conseguido concluir o primário. Não tinha condição. Eu sentia muita raiva, não tinha estímulo. Cheguei a participar de uma oficina que ensinava a fazer móveis de vime, no próprio colégio, por falta de interesse pelo estudo.
A minha volta para a favela foi muito complicada. Havia deixado meu irmão – um ano mais velho – por lá. Ele tinha sido criado por outra tia nossa, que era alcoólatra e que não deu a ele a mesma oportunidade de estudar que eu tive. Ele passou fome, teve que trabalhar em biroscas, foi explorado, ganhava muito pouco... mesmo assim, conseguiu construir o barraquinho dele. Na minha volta, tivemos de morar juntos. E eu percebi que ele era uma pessoa muito revoltada, exatamente, pelo fato de não ter tido as mesmas oportunidades que eu tive. Por isso, a nossa convivência era muito ruim.
Em pouco tempo, ele engravidou uma jovem, se casou com ela e eu tive que sair de casa. Então, passei a dormir na rua, pois ainda não tinha emprego e não podia pagar um aluguel. Como eu tinha vergonha que as pessoas me vissem naquela situação, esperava todo mundo dormir, estendia a minha esteira na rua e dormia ali mesmo. Até que um primo meu me viu e me convidou para morar com ele. Dali, eu consegui um emprego e pude comprar o meu próprio barraco. Na favela, eu conhecia todo mundo, os marginais, inclusive. Mas não me envolvia. Então eu voltei a estudar, concluí o primário e comecei a fazer o ginasial (ensino médio). 

Como aconteceu o episódio das remoções?

Naquela época, o governador era o Negrão de Lima. Ele ia à favela e fazia promessas. Dizia que iria urbanizar, isso e aquilo. Chegou a colocar uma bica de água potável para os moradores. Nós criamos uma associação de moradores na época, em 1967, para nos organizar como comunidade. O governador prometeu urbanizar a favela, que era o que a gente queria. A gente nadava, pescava na lagoa, jogava bola no campo de futebol, tudo na favela.
Em 1968, a gente não entendeu quando apareceram alguns agentes recadastrando os moradores. Eles nos perguntavam onde nós gostaríamos de morar se não pudéssemos ficar. A gente dizia que em lugar nenhum, porque queríamos continuar ali. Mas, dentro das opções que eles apresentavam, eu respondi que queria morar o mais perto possível do meu trabalho. Tinha como opções a Cidade de Deus, Vila Aliança, Cidade Alta, entre outras. Mas o mais perto para mim era Brás de Pina. Seria uma casa própria que a gente pagaria a prestações. Eu trabalhava em Copacabana como faxineiro e não queria sair da Zona Sul ou ir para muito longe dali, pois sabia que era ali que havia emprego.
Então, durante a copa do mundo de 1970, estávamos comemorando a vitoria do time de Pelé, Tostão, Rivelino, Gerson e companhia, e, por volta das 5h da manhã, ouvimos a chegada da polícia, com cães, caminhões da companhia de limpeza urbana. Eles começaram a escrever um ‘x’ nos barracos, marcando as casas que deveriam ser abandonadas. Tomamos aquele susto enorme. Tentamos nos organizar, mas não foi possível. Foi uma grande tristeza. Não podíamos levar animais de estimação, os móveis foram postos em cima dos caminhões, mas sem as devidas identificações, o que fez muitos perderem os pertences. Chovia muito nesse dia. Todos ficaram desnorteados: te acordam de madrugada, te expulsam de casa, agem dessa maneira arbitrária... e quem tinha que trabalhar no dia seguinte? As pessoas foram muito prejudicadas, perderam seus empregos. Muitos não tinham dinheiro para o transporte. Eu morava na Lagoa e ia a pé até o trabalho, em Copacabana. Como iria fazer para ir de Brás de Pina para lá? Na favela, a gente dava o nosso jeito. Se não tinha dinheiro ou comida, pedia para o vizinho, um amigo. Depois que nos separaram, ficamos sem ter essas referências. A maioria não se conhecia. Eles dividiram as pessoas. Meus amigos foram para a Cidade de Deus, em Jacarepaguá. Foi uma coisa muito difícil. Uma remoção com muita agressão.

E as pessoas conseguiram se adaptar às suas novas vidas?

Eu, por acaso me adaptei. Eram apartamentos de três quartos, uma bênção para mim. Tinha energia, esgoto. Mas tinha que pagar, o que a gente não fazia na favela. Foi bom, porque na favela era tudo “gato”. Hoje a gente reconhece que é a coisa correta a ser feita. Então eu fui me adaptando com o tempo e hoje eu adoro aquele bairro.
Mas no inicio não foi fácil. Nós recebemos os apartamentos “no osso”. Tínhamos que emboçar as paredes, as portas tinham a mesma fechadura em todas as casas. Então tínhamos que trocar as portas, as fechaduras, pois houve muitos casos de apartamentos que foram assaltados. Também não havia creches para as crianças pequenas. Minha esposa não podia trabalhar, pois não havia com quem deixar a nossa filha.
Muitos não se adaptaram. Alguns voltaram para a favela, ficaram perambulando por lá, tiveram problemas mentais e precisaram ser internados. Fiquei sabendo de pessoas que chegaram a arrancar os vasos dos apartamentos porque não conheciam isso na favela. Não estavam acostumados.

E como foi o processo de produção do livro?

Eu comecei a escrever o livro em 2005, quando a minha tia – que me criou – faleceu. Foi uma homenagem a ela. Tive problemas com uma pessoa que dizia me representar. Ela pegou o livro e foi “vender” em uma editora. Foi aí que a Regina Casé teve acesso a ele (“seu” Claudio foi entrevistado pela apresentadora no programa “Um pé de quê”, em 2008), depois que ele enviou a obra para o “Viva Rio”. Então ela me chamou para fazer uma entrevista na Favela da Catacumba. Me deu uma emoção forte voltar lá pela primeira vez depois da remoção. Passou aquele filme na minha cabeça. Eu comecei a procurar o meu barraco, do meu pai, da minha mãe. Eu chorava copiosamente, e tive dificuldade até para dar a entrevista.
Depois disso, voltei a escrever o livro. Tive que pagar uma dívida com a editora deixada por essa pessoa. Nesse meio tempo, meu irmão se internou para tratar de um câncer. Eu me reaproximei dele por causa da doença. Ficava ao lado dele no hospital, cuidando dele... voltamos a conversar. Mas ele teve muito pouco tempo. Então, resolvi terminar o livro em homenagem a ele. Lá, eu falo da nossa convivência que foi muito ruim... (neste instante, “seu” Claudio se emociona e fica em silencio por alguns segundos, tentando conter as lágrimas e a fala embargada).
Então eu consegui terminar o livro e dar o meu depoimento que espero que sirva de exemplo para essa juventude... não justifica dizer que nasceu na favela, que cresceu na favela, que não teve oportunidade... eu passo isso para os meus cinco filhos e meus quatro netos.

E como a sua trajetória na universidade te ajudou a superar essas adversidades?

Quando eu vim para a universidade, eu tive acesso à cultura. Antes, eu havia tido muitos empregos ruins, trabalhei na estiva, em subempregos... Então, na universidade, quando fui diretor do alojamento, tive acesso a estudantes de todos os cursos. Comecei a sair com eles para vários lugares: teatro, cinema etc. Comecei a adquirir cultura formal através deles.
Além disso, eu também entrei para o movimento negro do Sintufrj. Isso me ajudou a organizar o pensamento, a ascender, a voltar a estudar. Através do movimento negro, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Nelson Mandela e Desmond Tutu. Me tornei uma pessoa mais culta, tive acesso a esse conhecimento, digamos, formal. Organizei eventos de incentivo à cultura negra etc.

Agora que você já escreveu um livro, teve cinco filhos... já plantou uma árvore?

Sim! Eu sempre planto árvores... me preocupo muito com o meio ambiente.

Então, o que fazer a partir de agora?

A minha preocupação é fundar uma ONG, no lugar onde eu moro, para jovens carentes. Lá terão curso de inglês, capoeira, esporte, lazer, o que não tem na comunidade. Quero passar para o negro que ele é capaz de vencer pelo próprio esforço. Até porque eu não sou a favor das cotas raciais.

Por que não?

Não sou a favor do jeito como ela está sendo elaborada. A média do cotista é mais baixa do que os não cotistas. Assim, ele não vai conseguir um bom emprego. Tem que dar, mas sem esmolar. Além do fato da assistência estudantil. Não adianta dar a cota se ele não tem condições financeiras de se manter na universidade. Acho que tem que ter cota para o estudante carente, não para o negro. Cotas sociais, não raciais.