Em entrevista ao G1, o reitor da federal do Rio explica detalhes do projeto-piloto de ingresso na universidade
Está em debate na Universidade Federal do Rio de Janeiro um programa de acesso aos cursos sem o exame vestibular. Pela proposta, os estudantes seriam selecionados durante o ensino médio da rede pública estadual do Rio de Janeiro e passariam por um período letivo de equalização de conhecimentos na universidade. O programa prevê um aumento de 5% no número de vagas ofertadas pela instituição.
O reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira, acredita que essas são algumas das medidas necessárias para enfrentar as distorções da estrutura da universidade pública no país. Segundo ele, os números mostram que 60% dos jovens concluem o ensino médio em escolas públicas, mas apenas 40% deles se inscrevem no vestibular das instituições públicas. "Isso é mal que revela que o estudante do ensino médio não se sente seguro em participar desse processo e, por outro lado, que a universidade não está suficientemente atenta para dar conta desse problema", disse Teixeira.
Leia a seguir trechos da entrevista que o reitor concedeu ao G1. Além do projeto-piloto da UFRJ, ele comenta o vestibular da USP, o Enem e o bacharelado interdisciplinar.
G1 –O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tido por muitos como a melhor forma de acesso à universidade, já está maduro para cumprir esse papel?
Aloísio Teixeira - É um bom instrumento de avaliação do ensino médio e do grau de conhecimentos que o estudante adquire nos seus cursos, mas não foi pensado para ser um mecanismo de acesso à educação superior. Eu acho que poderia ser usado para isso, mas deveria sofrer algumas alterações.
Por que digo isso? Porque ele tenderá a reproduzir um dos vícios do vestibular, que é o fato de você querer numa prova, num conjunto de provas, avaliar o estudante para ingressar na universidade. Do ponto de vista didático-pedagógico, isso é um processo que não é o melhor. Para que o Enem, ou alguma coisa como o Enem, possa ser usado, eu acho que primeiro dele deve estender a sua abrangência. O estudante do ensino médio não faria mais uma prova ao final, mas talvez uma sucessão de provas para completar cada uma das séries do ensino médio. Além disso, você teria que ter outros mecanismos de ação locais que se pudesse verificar a relação, o envolvimento do estudante com o conjunto de disciplinas, as suas vocações, etc, etc...
G1 – E o sistema que a Universidade de São Paulo (USP) adotou, que dá um bônus 3% nas notas do vestibular aos alunos egressos da rede pública?
Teixeira - Eu faço questão de destacar que todas essas propostas, essas experiências, revelam que há um descontentamento por parte da sociedade e da universidade, numa tensão cada vez maior, com o problema do acesso. Nós temos uma distorção muito grande no acesso à universidade.
Por exemplo, aqui, para nós da UFRJ, isso se manifesta de forma clara quando a gente examina os números: mais de 60% dos jovens que se formam no nível médio são provenientes da escola pública. Entre os que se inscrevem no vestibular da universidade, mais de 60% são da escola privada. Então, entre estudantes que se formam na escola pública, a maioria opta por não se candidatar à universidade pública. Isso é um mal que revela que o estudante do ensino médio não se sente seguro em participar desse processo e, por outro lado, que a universidade não está suficientemente atenta para dar conta desse problema.
G1 – Qual é o melhor método de avaliação para acesso à universidade?
Teixeira - Essa pergunta pode ter duas respostas: uma estritamente relacionada ao método de ingresso e a outra, à própria universidade. A universidade brasileira é estruturalmente de elite. O fato de que apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos têm acesso ou cursam a universidade e apenas 2% chegam à universidade pública vai além da simples apresentação dos números percentuais.
Esse percentual é muitas vezes menor do que o de outros países da América Latina, que são tão ou até menos desenvolvidos do que nós. Em países como o Equador e o Panamá, 30% estão na universidade; na Argentina, no Uruguai e no Chile, mais do que isso. É toda uma estruturação perversa da universidade brasileira, que funciona ou se organiza exclusivamente como uma federação de escolas de formação profissional. Enquanto a universidade for exclusivamente isso, não estará capacitada a receber uma quantidade crescente de jovens no seu interior. Resolver o problema do acesso passará em um momento por resolver esse problema de reconceituar a universidade brasileira.
A outra possibilidade de responder à pergunta é se fixando na questão do acesso. Eu acho que o vestibular é um método perverso. Porque acaba selecionando não o mérito do estudante, mas o seu nível de renda. A possibilidade [de ingresso na universidade] que tem o jovem da classe média e média superior, que estudou em colégios particulares de nível melhor, que não teve problema de falta de professor, que muitas vezes fez um curso de inglês, algumas vezes viajou para o exterior e que pode fazer um cursinho pré-vestibular pago, é muito maior. Isso se dá não por mérito, mas por renda.
Nós, aqui da UFRJ, estamos elaborando um projeto-piloto. Nós ampliaríamos a oferta de vagas em todos os cursos e testaríamos uma metodologia de avaliação continuada dos estudantes da rede pública estadual. E aqueles melhor vocacionados seriam aproveitados sem vestibular na universidade, é uma proposta que está em discussão ainda.
G1 - Seria para toda a universidade?
Teixeira - Claro que ela pode ser testada em uma ou outra faculdade ou num conjunto delas. A proposta é que todos os cursos ofereçam um acréscimo 5% de vagas para estudantes da rede pública estadual, que seriam selecionados na escola. Esse trajeto se completaria porque os estudantes entrariam e passariam um período letivo aqui fazendo uma espécie de equalização de conhecimentos. A idéia também foi conversada com a Secretaria de Educação pela possibilidade que eles [os estudantes] recebam uma bolsa de permanência paga pelo estado.
O efeito correlato dessa proposta seria que, através da relação da universidade com as escolas de ensino médio, se pudesse detectar eventuais insuficiências e lacunas na rede pública. Assim, material didático, a gente poderia fornecer; qualificação de professores, a gente poderia fornecer curso de qualificação; nossos laboratórios, os estudantes poderiam usar. Com isso haveria uma aproximação, uma sinergia maior, entre a educação superior e o ensino básico.
G1 – E as cotas buscar raciais? Não gosta delas?
Teixeira – Não é que eu não goste de cotas. Eu acho, tenho dito isso, que a discussão em torno das cotas teve o grande mérito de levantar esse problema. A universidade pública não reflete o que é a sociedade brasileira. A cota é uma solução que não resolve porque não adianta. Apenas 2% dos jovens entre 18 e 24 anos estão cursando universidades públicas. Se você der uma cota de 20%, isso é 0,4% dos jovens que vão poder se beneficiar desse instrumento. Não afeta a natureza elitista da universidade e, ao contrário, introduz um elemento de competição probatória entre os jovens que potencialmente podem ser objeto do benefício.
Quer dizer, o estudante negro não estará disputando a vaga com o estudante branco, estará disputando a sua vaga com outro estudante negro, o que, vendo isto como professor, eu não acho adequado e nem correto. Acho ótima a discussão das cotas, mas ela tem que avançar em outra direção, a reestruturação, a reconceituação da universidade e um projeto de expansão da educação superior que abra oportunidades de fato.
G1 – O senhor vai discutir mudanças no vestibular com o reitor da UFBA nos próximos dias?
Teixeira – A Universidade Federal da Bahia e o reitor Naomar tiveram uma grande iniciativa que ataca o problema fundamental da universidade brasileira, que é a sua estruturação como unidade de formação profissional. Acho que uma das características do mundo de hoje é que nós vivemos um processo de universalização da educação superior. Isso, claro, não é perceptível no Brasil - nós sequer universalizamos o ensino médio-, mas em países da Europa e nos Estados Unidos, os percentuais de jovens que freqüentam a universidade já são superiores a 60, 70%.
É claro que uma estrutura de educação superior capaz de receber a totalidade dos jovens tem que ser diferente. A primeira coisa que salta aos olhos é que ter um diploma universitário não significa ter uma habilitação para o exercício de uma profissão. Nem todas as profissões exigirão uma formação universitária, mas [o diploma] é indispensável à cidadania, à própria empregabilidade, na formação cultural dos cidadãos.
A proposta da Bahia tende a isso. Há a possibilidade de você cursar uma universidade não para ser médico, advogado ou engenheiro, mas para ter um curso superior, que é a idéia do bacharelado interdisciplinar. Nós estamos conversando, houve já uma reunião no Rio onde começamos a trabalhar um documento que será objeto de discussão na Bahia nos próximos dias, que resulta nessa preocupação das universidades com uma reforma mais profunda do que aquelas que estão sendo postas em discussão.