Ilustração: João Rezende |
No último mês, um episódio reacendeu o debate sobre a corrupção no Brasil. A morte de Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães, atropelado enquanto andava de skate num túnel interditado na Gávea (Rio de Janeiro), causou comoção nacional, além de colocar em evidência a cultura da propina, muito presente nas relações sociais brasileiras.
Depois do acidente, o atropelador do jovem, Rafael Bussamra, de 25 anos, foi interceptado por uma viatura policial na saída do túnel. Apesar de as condições do carro indicarem o ocorrido, os policiais liberaram o veículo. Posteriormente, o pai de Rafael admitiu que os agentes exigiram R$ 10 mil para desfazer a cena do acidente e liberar o atropelador.
Episódios de corrupção ativa e passiva são comuns nas grandes cidades do país. O “jeitinho” se eternizou como uma forma de o brasileiro resolver questões sem enfrentar as penalidades previstas em lei. Mas como esse comportamento afeta a vida pública no Brasil? Em que medida o cidadão é responsável pela corrupção que permeia as instituições? Para responder a essas questões, o Olhar Virtual entrevistou Karina Kuschnir, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, e Leonarda Musumeci, professora do Instituto de Economia (IE). Confira a opinião das especialistas:
Karina Kuschnir,
professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs)
O suborno ocorre quando a própria sociedade não acredita nas suas instituições: no Judiciário, no Executivo e no Legislativo. Quando prevalece a "cultura do jeitinho", já dizia o antropólogo Roberto DaMatta, é porque a lei só serve para os "inimigos". Isto é, a possibilidade do suborno evidencia uma descrença na legalidade, nos códigos da cidadania universal, na possibilidade de todos cumprirem direitos e deveres como cidadãos.
Infelizmente, poucos crimes no Brasil são punidos de forma exemplar. Nem sempre punir bem significa colocar um indivíduo na cadeia: restituir com multas os valores roubados ou cumprir penas alternativas de grande visibilidade são punições que poderiam ser mais bem utilizadas no Brasil. A impunidade é mais grave ainda quando os crimes são cometidos por ocupantes de cargos públicos, que lesam toda a sociedade brasileira não apenas financeiramente, mas também no sentido moral.
Todos os participantes têm responsabilidade num ato de corrupção.
Importante destacar que as grandes mudanças na sociedade só acontecem com a melhora da educação pública em todos os níveis (infantil, fundamental, médio e superior). Também é preciso melhorar os serviços públicos de modo geral, especialmente aqueles que atingem a grande maioria da população que ainda não tem acesso a direitos básicos como saúde, transporte e saneamento.
É fundamental que a população perceba nos agentes públicos uma vontade política de punir as transgressões, a improbidade administrativa, os desvios financeiros etc. Finalmente, destaco a importância da transparência na informação, através da internet, sobre todos os atos do poder público: esta é uma grande ferramenta para melhorar a fiscalização por parte de toda a sociedade sobre os gastos do seu próprio dinheiro. Esse tipo de evolução já aconteceu, por exemplo, com o sistema do INSS, que era um tormento para os brasileiros e, hoje, embora esteja longe de ser perfeito, já avançou muito em termos de qualidade, por permitir consultas on-line, agendamento de serviços e agilidade na emissão de documentos e benefícios. Se o serviço é eficaz por que o cidadão pensaria em corromper um funcionário público?
Leonarda Musumeci,
professora do Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
O que leva um policial específico, ou um indivíduo qualquer, a cometer crimes só se poderia saber conhecendo sua história de vida, sua estrutura psíquica, sua ambiência familiar etc. A pergunta a ser feita, se queremos enfrentar socialmente o problema, é: que fatores facilitam, favorecem, incitam ou estimulam a prática tão frequente da corrupção e de outras ilegalidades por parte de agentes que deveriam fazer cumprir a lei?
A presunção de impunidade – de ambas as partes – parece ser o fator mais imediato. Lembro que o delegado Hélio Luz provocava a classe média carioca perguntando se realmente toleraríamos uma polícia severa, que agisse dentro da estrita legalidade, sem “jeitinhos” nem propinas. Aqui também devem ser evitadas generalizações, mas não há dúvida de que, em grande medida, uma resposta honesta ao delegado teria de ser negativa. O caso do filho de Cissa Guimarães ilustra de forma chocante algo que acontece em variados graus no dia a dia: a licença para transgredir e a (quase) certeza de que, se houver algum problema, a propina resolve.
Outro fator importante, certamente ligado a esse primeiro, é a fragilidade dos controles interno e externo da atividade policial. Não por falta de órgãos com essa função, mas porque eles têm atuado muito aquém do necessário para combater efetivamente a cultura da impunidade. Falta-lhes infraestrutura e apoio político para essa missão. Mas, sobretudo, falta pressão social constante e decidida para que ajam nesse sentido.
Se focalizamos o gesto como via de mão dupla – corrupção ativa e passiva – isso representa a própria negação da vida pública. Esta só existe se houver respeito às leis e ética da responsabilidade. Se o pai de um atropelador se acha no direito de livrar seu filho da responsabilidade comprando o silêncio dos policiais e se estes consideram válida a transação, saímos da esfera pública para um “mercado” clandestino de resolução de “problemas” privados. Só faltaria alguém decidir fazer justiça com as próprias mãos para que se fechasse o ciclo e revertêssemos à completa barbárie. Felizmente – e é por isso que não se pode generalizar – há muitas pessoas que, mesmo diante da mais terrível dor, da mais terrível injustiça, continuam acreditando na necessidade de preservar a vida pública e os princípios básicos da convivência social.
Não creio que aumento de salário a policiais, por si só, resolva o problema. A melhora desse quadro passa, certamente, pela valorização dos profissionais de polícia, mas, sobretudo, por uma profunda reforma das obsoletas instituições policiais, pelo funcionamento efetivo e eficiente dos controles internos e externos do trabalho de polícia, pela transformação das mentalidades, pela alteração das políticas de segurança. Vale a pena ressaltar esse último aspecto: por muito tempo, segurança pública foi definida exclusiva ou primordialmente como “guerra contra o crime” e isso quase sempre foi interpretado como necessidade de fazer vista grossa a desvios, abusos, violência e corrupção, dado que a prioridade era “combater” bandidos. A polícia do confronto é uma polícia com licença oficial para matar e licença oficiosa para usar a força ilegalmente, a serviço da corrupção. Infelizmente, essa é a triste história da segurança pública do Rio de Janeiro há muitas décadas. Talvez esteja começando a mudar. Esperemos que sim.