O livro Coroas, de Mirian Goldenberg, professora de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), analisa a vida das mulheres maduras no Brasil. A obra foca aspectos, tais como relacionamentos, corpo e realidade social. O título refere-se ao grupo de estudos criado pela pesquisadora, voltado para pesquisas de comportamento sobre mulheres acima dos 50 anos.
A docente desenvolveu pesquisas com homens e mulheres no Brasil, Alemanha e Espanha e pretende demonstrar de que maneira temas como relacionamento, infidelidade, beleza, envelhecimento e casamento são tratados nesses países. No livro, a autora dialoga com o antropólogo espanhol Jordi Roca, para analisar as diferenças sobre esses temas entre o Brasil e o país ibérico. Goldenberg também dialoga com o jornalista Alexandre Werneck sobre como são vistas as mulheres brasileiras e francesas que posam para revistas masculinas, além de analisar qual o valor dado ao corpo feminino em cada país.
Olhar Virtual: Coroas é um livro escrito essencialmente para o público feminino? Por quê?
Mirian Goldenberg: Não é um livro escrito para as mulheres. Ao contrário. Todos os meus livros são escritos pensando nas relações entre homens e mulheres. Portanto, de interesse para os dois gêneros. No entanto, é inegável que as mulheres têm muito mais interesse neste tipo de discussão e acabam lendo muito mais os meus livros. Alguns dos meus livros, como Infiel: Notas de uma antropóloga, foram e são muito lidos por homens. Sei disso pelos inúmeros e-mails que recebo dos leitores de diferentes cidades e estados. Muitos homens me escrevem comentando o que leram e contando suas histórias. Tenho centenas de e-mails de leitores que escrevem sobre suas próprias questões com relação à infidelidade, ao envelhecimento etc.
Olhar Virtual: Qual o perfil das "coroas'" brasileiras atualmente?
Mirian Goldenberg: Não existe um único perfil. Existem aquelas mulheres que percebem o envelhecimento como um momento de perdas e outras que vivem o envelhecimento como um momento de libertação. Nos grupos de discussão que realizei com mulheres das camadas média e alta do Rio de Janeiro, o que mais me chamou a atenção foram quatro tipos de ide ias, extremamente recorrentes nos depoimentos das pesquisadas: falta, aposentadoria, invisibilidade e liberdade. Algumas pesquisadas se auto excluem do mercado afetivo e sexual. Elas usam a id eia de aposentadoria em seus depoimentos. Muitas mulheres me disseram que passaram a se sentir invisíveis depois dos 50, ou mesmo antes, aos 40, quando deixaram de receber olhares, elogios ou cantadas nas ruas. Por outro lado, apareceu também, com muita ênfase, a id eia de liberdade, sem irritações com homens, e do casamento como uma prisão invisível. Outras mulheres percebem o envelhecimento como uma redescoberta altamente valorizada de um “eu” que estava encoberto ou subjugado pelas obrigações sociais, especialmente pelo investimento feito no papel de esposa e de mãe.
Olhar Virtual: O que as "coroas" descritas no livro procuram numa relação?
Mirian Goldenberg: Eu diria que elas procuram, mais do que nunca, intimidade. E eles procuram compreensão. A intimidade, para elas, está associada a uma forma mais profunda de comunicação, de conversa, de diálogo, de escuta; e também a um tipo especial de entrega emocional e amorosa. Elas acreditam que os homens são incapazes de serem mais subjetivos, mais reflexivos, mais interiorizados. Acreditam, também, que eles são imaturos, superficiais e alienados, que eles não conseguem expressar seus sentimentos, desejos e sofrimentos como elas. No material da minha pesquisa chama muita atenção o fato de as mulheres reclamarem da falta de intimidade com seus parceiros, enquanto os homens se queixam da falta de compreensão de suas mulheres. Esta me pareceu a diferença de gênero mais marcante entre os meus pesquisados.
Olhar Virtual: Hoje, a mulher não é mais estereotipada como dona de casa, que apenas cuida dos filhos. Ela já exerce profissões no mercado de trabalho antes ocupadas apenas por homens. De alguma forma, esta inserção faz com que mudem os padrões de feminilidade?
Mirian Goldenberg: Acho que hoje os modelos são múltiplos e as escolhas, muito maiores. É difícil falar em padrões de feminilidade e masculinidade na atualidade, pois estes dependem do lugar, do grupo, da profissão, dos interesses de cada um.
Olhar Virtual: Qual a importância do diálogo com o antropólogo Jordi Roca e das pesquisas na Alemanha e na Espanha?
Mirian Goldenberg: Ele e as pesquisas que realizei nos dois países me permitiram enxergar melhor a realidade brasileira. O olhar comparativo me fez enxergar a importância do corpo e do marido em nossa cultura, fato que não ocorre, na mesma dimensão, em outras culturas.
Olhar Virtual: Na publicação, a senhora constrói um diálogo com o jornalista Alexandre Werneck sobre o corpo feminino. Qual a real importância do corpo para as "coroas" brasileiras?
Mirian Goldenberg: Como mostro em inúmeros estudos, no Brasil o corpo é um capital. Determinado modelo de corpo, na cultura brasileira contemporânea, é uma riqueza, talvez a mais desejada pelos indivíduos das camadas médias urbanas e também das camadas mais pobres, que percebem seu corpo como um importante veículo de ascensão social e, também, um importante capital no mercado de trabalho, no mercado de casamento e no mercado sexual. Neste sentido, além de um capital físico, o corpo é, também, um capital simbólico, um capital econômico e um capital social. No entanto, é preciso ressaltar que este corpo capital não é um corpo qualquer. É um corpo que deve ser sempre sexy, jovem, magro e em boa forma. Um corpo conquistado por meio de um enorme investimento financeiro, muito trabalho e uma boa dose de sacrifício. Pode-se dizer que ter “o corpo”, com tudo o que ele simboliza, promove nos brasileiros uma conformidade a um estilo de vida e a um conjunto de normas de conduta, recompensada pela gratificação de pertencer a um grupo de valor superior. “O corpo” surge como um símbolo que consagra e torna visíveis as extremas diferenças entre os grupos sociais no Brasil.
Olhar Virtual: Como o tema (o culto ao corpo na terceira idade) é tratado na Espanha e na Alemanha?
Mirian Goldenberg: Lá, esta não parece ser uma questão tão importante como aqui. Há uma reação violenta com relação ao culto à magreza proibindo a publicidade com mulheres- objeto, modelos muito esguias etc. Também as campanhas publicitárias e as apresentadoras de TV são muito mais diversificadas do que aqui no Brasil. Eles prezam a diversidade, não a homogeneidade. A particularidade, e não o padrão.
Olhar Virtual: Como o livro aborda a questão da infidelidade? O mito de que os homens traem mais que as mulheres ainda prevalece?
Mirian Goldenberg: Os comportamentos masculinos e femininos não estão mais tão distantes, inclusive no que diz respeito à traição – como mostram os dados da minha pesquisa em que 60% dos homens e 47% das mulheres afirmam já terem sido infiéis. Os homens justificam suas traições por meio de uma suposta essência masculina. Já as mulheres infiéis dizem que seus parceiros, com suas faltas e infidelidades, são os verdadeiros responsáveis por suas relações extraconjugais. Ou seja, no discurso dos pesquisados, a culpa da traição é sempre do homem: seja por sua natureza incontrolável, seja por seus inúmeros defeitos (e faltas) no que diz respeito ao relacionamento. Se é inquestionável que nas últimas décadas houve uma revolução nas relações conjugais, pode-se verificar que na questão da infidelidade ainda parece existir um “privilégio” masculino, isto é, ele é o único que se percebe e é percebido como sujeito da traição. Enquanto a mulher, mesmo quando trai, continua se percebendo como uma vítima, que no máximo reage à dominação masculina.