O
primeiro (presente do avô) tinha sido o almanaque. Interessava-me
cada vez mais pelas figuras, ficava a olhá-las até
as saber de cor. Algumas tinham letras embaixo, o meu avô
apontava-as com o dedo. As letras diziam o mesmo que as figuras.
Assim, por exemplo, se ele mostrava: O cão do Belarmino,
embaixo as letras repetiam: O cão do Belarmino. Podiam olhar-se
as figuras ou as letras, eu preferia sempre as figuras.
Um dia olhei uma figura, e as letras embaixo, e novamente a figura.
E então as letras, quando tornei a olhá-las, correram
a juntar-se em molhos. Cada molho era uma coisa, um molho era um
cão, outro molho era uma casa. Fiquei vermelha de supresa
e senti-me quase sufocar. O meu avô riu-se, e eu vi que agora
não podia voltar atrás: não conseguia olhar
as letras sem ler o que diziam.[3]
O momento em que a menina percebe dominar o código é
de tal intensidade que ela se sente sufocar. A partir daí,
o caminho – para a frente, sem retrocesso – revela o
sentido que pulsa no texto. Impresso no almanaque que o avô
dera a ela de presente e que contém muitos outros textos,
vão todos eles permitir a ela a posse das histórias,
a escrita da sua história. Da mesma forma, Graciliano, há
dois anos na escola e sem ter aprendido a ler, se alfabetiza no
fundo do quintal, num livro de ficção, lendo sozinho
os sinais escuros na página branca, como os astrônomos
lêem, no céu, sinais de mundos distantes: “Eu,
pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu.
Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes,
em que há homens perseguidos, mulheres e crianças
abandonadas, escuridão e animais ferozes.” [4]
O que as cartilhas não deram a um e a outro, deram o livro
de ficção e o almanaque, textos que estavam ao alcance
da mão, fora da escola. Por que não deve a escola
apropriar-se desses textos para o tempo de exercer da letra? E não
ficaríamos só nesses, mas nos textos de jornais, revistas,
receitas culinárias, receitas médicas, propagandas
de supermercado, contas de luz, água ou telefone, simpatias,
letras de música, página de Internet, caderno de pensamentos:
todo um mundo de cultura escrita viva, circulando, propiciando acesso
ao patrimônio cultural da humanidade, à informação,
fornecendo o sentido para a leitura, o sentido para a escrita: compor
os próprios pensamentos, registrar sua receita ou simpatia,
pedir informações à revista, manifestar opinião
quanto à matéria publicada em um jornal, escrever
ao escritor, à autoridade, fazer uma reclamação,
escrever sobre uma experiência ou sobre os sentimentos.
O adulto ou jovem que se alfabetiza precisa – sem nenhuma
dúvida – letrar-se, habilitar-se ao uso da letra, usufurir
das riquezas e responsabilidades que dela advêm, sem que seja
feita a esse adulto, a esse jovem, qualquer restrição
ao tipo de uso que quiser encontrar para sua leitura, sua escrita:
as origens da escrita não apresentam nobres ideais, mas a
prosaica função do registro comercial. E essa história
segue, numa via constante de apropriação, com as pessoas
do povo pegando para si aquilo que não estava destinado a
elas. Clássicos da literatura são adaptados e vendidos
por caixeiros-viajantes no interior da França do século
XVII e XVIII, meninos pobres cortam o território suíço,
no século XVI, enfrentando frio, fome e peste para ir estudar
onde estavam os mestres, um menino mulato e pobre burla, no Rio
de Janeiro, a sociedade estratificada do Segundo Império
para construir um monumento literário.
Nesse saber novo que está sendo criado, e que compreende
a posse pelo aluno e pela aluna de uma cultura escrita e do usufruto
desse patrimônio, é indispensável que também
o professor ou a professora esteja inserida ou inserido nessa rede,
o que parece óbvio – e não é. Mudanças
sociais, tempos de crise, desvalorização pecuniária
da carreira do magistério criam novos lugares de proveniência
do professor e da professora, lugares em que nem sempre essa cultura
escrita está presente.
A biblioteca é um dos principais espaços onde ususfruir
da cultura escrita. Fazer acontecer a aula na biblioteca, freqüentar
as bibliotecas próximas, cobrar do poder público a
manutenção delas e, dentro da escola, empenhar-se
para uma biblioteca escolar viva são algumas das estratégias
que inserem professores e alunos numa dinâmica de letramento,
de tempo de não-esquecer, tempo de fazer sentido –
como se pode verificar em inúmeros trabalhos que constatam
a força da biblioteca na vida de jovens leitores.
Mas não esquecer que essa biblioteca tem início na
sala de aula, com o professor que lê – em voz alta –
para seus alunos o livro de literatura, o poema, a notícia
de jornal, retornando a um tempo em que o leitor alfabetizado partilhava
com o auditório não-alfabetizado os enigmas, as informações,
a beleza de um texto escrito. Recriar esse tempo, instituir outros
leitores – a rede vai-se fazendo e escapa a seus criadores,
estende-se no mundo, sustenta esse projeto e saber tão novos:
a letra e o livro na vida de todos.
[1] LACERDA, N. G. (2000)
p. 30-1.
[2] RAMOS, G. (1986) p. 109.
[3] GERSÃO, T. (2000) p. 27.
[4] RAMOS, G. (1986) p. 203.
Bibliografia
ALVES, Nilda; GARCIA, Regina (org.) O sentido da escola. Rio de
Janeiro: DP&A, 1999.
CECCON, Claudius; PAIVA, Jane (org.) Bem pra lá do fim do
mundo; histórias de uma experiência em Riacho Fundo,
Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. [Niterói]: CECIP, 2000.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador; conversações
com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes.
2. reimp. São Paulo: UNESP, Imprensa Oficial SP, 1999.
GERSÃO, Teolinda. Os anjos. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 2000.
LACERDA, Nilma Gonçalves (cons.) Casa da Leitura: presença
de uma ação; filosofia e perfil da Casa da Leitura,
Programa Nacional de Incentivo à Leitura/ PROLER. Rio de
Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, [2000].
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia
Soares. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
RAMOS, Graciliano. Infância. 23. ed. Rio de Janeiro: Record,
1986.
SOARES, Magda. Letramento – um tema em três gêneros.
2. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
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