Opinião
do professor Gilberto Velho
As medidas de descriminalização e legalização
parcial do uso de certas drogas na Holanda expressam uma visão
menos repressora e policialesca desse complexo problema que afeta
hoje todo o mundo. As proibições e políticas
repressivas tem, na prática, alimentado a atuação
das redes criminosas que se espalham pelo mundo, associadas ao tráfico
de armas, envolvendo os mais diferentes atores sociais, incluindo,
em vários casos, setores de governo e da segurança
pública.
O caso brasileiro, infelizmente, é uma demonstração
da falência dessas políticas meramente repressivas
que contribuem para o desenvolvimento da própria criminalidade
e para a corrupção generalizada. A violência
que assola grande parte do Brasil, particularmente as grandes cidades,
tem diversas causas. Uma das mais evidentes é a desigualdade
social com todos os seus desdobramentos e conseqüências.
É nesse terreno de pobreza e carência que os traficantes
têm encontrado condições propícias para
o seu crescimento e fortalecimento. Os mais diferentes tipos de
gangue atuam em favelas, na periferia, em conjuntos habitacionais
etc. , tiranizando as suas populações. Ao mesmo tempo,
a sua atração consiste na possibilidade de oferecer
possibilidades de gratificação de diferentes tipos
, sobretudo, para segmentos jovens frustrados em suas expectativas
e aspirações de padrão de vida e estima social.
Por outro lado, estabelece-se uma relação com os consumidores
de camadas médias e de elites, criando um sistema perverso
de permanente realimentação da atividade criminosa.
Sabe-se que grande parte do aparelho repressor contamina-se e torna-se
cúmplice do tráfico, não sendo possível,
muitas vezes , distinguir , na sua atuação, os representantes
da lei dos criminosos propriamente ditos. Não há nenhum
sinal de que as políticas hoje vigentes de combate ao uso
e tráfico de drogas tenham possibilidades reais de melhorar
a dramática situação em que vivemos.
Não se trata de defender uma liberação indiscriminada
de toda e qualquer droga. A descriminalização e a
legalização parcial, se conduzidas com seriedade e
legitimidade, podem possibilitar um maior controle efetivo da sociedade
sobre essas práticas hoje clandestinas. Ao mesmo tempo, poderia
se constituir em um instrumento fundamental para o desmonte do tráfico
e do enfraquecimento do mundo do crime e da violência.
Certamente, essas mudanças implicam políticas internacionais
e não apenas locais e nacionais, devido à globalização
do tráfico e do crime em geral, incluindo os complexos e
danosos mecanismos de lavagem de dinheiro. É fundamental,
também, que ao lado dessas mudanças na legislação
e no controle das drogas, desenvolvam-se políticas sociais
abrangentes e contínuas voltadas para o atendimento das necessidades
e aspirações da população dos diferentes
países vítimas do terrível quadro descrito.
Opinião
do professor Arthur Arruda
"Em
março deste ano, face aos seguidos levantes produzidos pelos
traficantes cariocas, o Senador Jefferson Perez (PDT-AM) propôs
que a questão da liberação e da descriminalização
do uso de drogas se colocasse em discussão. Em um discurso
conciso, o senador propôs que fossem minuciosamente calculados
os riscos da situação em que nos encontramos comparados
aos destas alternativas. Eis um ponto chave a ser pensado: cálculo
dos riscos; não há solução utópica
sem novos perigos. Isso não implica que devemos sempre apostar
nos mesmos riscos, especialmente quando estes tomam as proporções
em que os levantes do início do ano puderam dar a medida.
Este é o nosso risco real: o poder que não está
apenas no potencial bélico dos traficantes (que torna a classe
média tão refém em nossa cidade quanto as comunidades
carentes), mas principalmente na flexibilidade econômica,
dada a alta liquidez do capital circulante. Em tese não modelo
mais perfeito de capitalismo avançado, sem qualquer intervenção
do Estado (excetuadas as parcerias nos casos de corrupção),
e com trabalhadores extremamente competitivos e sem qualquer gasto
previdenciário (Fernandinho Beiramar é um dos raros
exemplos de longevidade no ramo). Não se trata de um trabalho
abstrato, mas bastante concreto. Tal poderio econômico não
apenas permite fazer frente à força do Estado, mas
principalmente cooptá-lo de múltiplas formas e através
de todos poderes constituídos (legislativo, judiciário
e executivo; micro e macropolítico). Este é o nosso
risco cotidiano: o aprofundamento deste processo no qual o estardalhaço
demonstra o poder de fogo e o silêncio, a suspeita de um apaziguamento
a custa de uma captura dos poderes públicos.
Neste quadro, a descriminalização do uso de drogas
poderia atuar ao menos na diminuição de uma das pontas
do processo de corrupção: o que liga o consumidor
de classe média e alta aos poderes públicos. E quanto
à liberação, quais seriam os seus riscos? A
medida pode ser inferida pelos efeitos do álcool, a maior
droga proporcionadora de danos coletivos (o cigarro, por exemplo,
produz mais danos na saúde do próprio usuário
do que em seu entorno familiar e social). Podemos ver em um experimento
aberto, a promulgação e revogação da
Lei Seca nos Estados Unidos, os principais riscos: aumento de consumo
em período recessivo X organização e capitalização
de grupos contraventores. Se esse segundo risco já conhecemos
cotidianamente, como seria o mundo com outras drogas ofertadas no
coquetel de consumo? Como dar conta da dependência e seus
riscos coletivos? Seria suficiente proibir propagandas de conteúdo
erótico e temas infantis? Acrescentar mensagens de advertência
como no caso do cigarro? Uma possível alternativa seria cobrar
dos revendedores destes produtos os prejuízos pessoais e
coletivos produzidos pelo vício de certos usuários,
como o ressarcimento por gastos em tratamentos de recuperação,
ou a contribuição para um fundo geral de assistência
aos dependentes. Mas é claro que estes mecanismos, uma vez
oficializados, abririam espaço para o desvio e novas formas
de transgressão (não podemos mais crer que a promulgação
de uma lei resola todos os nossos problemas). Além de abrir
espaço para a realocação em novas formas de
contravenção da população fartamente
empregada nas hostes do tráfico (como no sequestro e roubo).
Enfim é necessário se ponderar sobre qual risco optaremos:
a proibição de várias drogas com o incremento
da máfia no combate & conluio com o nosso frágil
Estado? Ou a liberação com os ônus individuais
e coletivos em nosso sistema de saúde?. Nossa resposta deve
ser ponderada com uma série de peculiaridades que nos dizem
respeito, como a alta corruptibilidade do Estado brasileiro (fato
cotidiano), a farta disponibilidade de mão-de-obra para o
mercado da contravenção, e a nossa posição
no tráfico internacional, enquanto grande centro distribuidor.
Neste aspecto poucas lições podemos tirar de exemplos
como o holandês, país que representa apenas uma ponta
de consumo exótica no grande mercado internacional. Tais
questões se colocam para que possamos optar pelos nossos
riscos. ou ao menos inventar novos, uma vez que os antigos, mesmo
sendo fortemente conhecidos, não nos retiram da experiência
de paralisia em que nos encontramos."
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