Pesquisa realizada
pela FASE e pelo IPPUR/UFRJ
Maio 2004
Coordenação: prof. Henri Acselrad (IPPUR/UFRJ)
Apresentação
Desde
o final de 2003, têm sido freqüentes as queixas de representantes
empresariais contra a “demora excessiva”, as “exigências
descabidas” e os “empecilhos burocráticos”
pelos quais o processo de licenciamento ambiental estaria inviabilizando
investimentos. O Mapa dos Conflitos Ambientais do Estado do Rio
de Janeiro, pesquisa recente desenvolvida pela UFRJ, mostra que
os licenciamentos não são mera barreira burocrática
ao desenvolvimento. Ao contrário, consideradas as dificuldades
das agências públicas fiscalizarem o respeito às
normas, os licenciamentos mostram-se, com freqüência,
necessários e mesmo insuficientes para proteger a população
- notadamente os grupos de menor renda - dos riscos ambientais dos
empreendimentos. As dificuldades de se fazer respeitar as normas
ambientais estariam inclusive na origem de grande parte dos conflitos
ambientais que se manifestam no estado.
O
Mapa dos Conflitos Ambientais faz parte do projeto Mapa da Justiça
Ambiental no Estado do Rio de Janeiro, realizado pela FASE –
Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional, em conjunto com o IPPUR – Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, com recursos
oriundos de medidas compensatórias da Petrobrás, repassados
pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano
a partir de iniciativa da gestão Liszt Vieira em 2002.
Ao
longo de 15 meses, os pesquisadores do Mapa dos Conflitos promoveram
levantamentos nos registros de instituições públicas
como a FEEMA, o Ministério Público Estadual, o Ministério
Público Federal e a Divisão de Recursos Minerais,
com o intuito de identificar conflitos ambientais que envolvessem
as parcelas mais pobres da população fluminense.
O
levantamento
O
estudo teve caráter qualitativo e visou identificar o modo
como as agressões ambientais afetam as populações
de menor renda. Ao buscar o registro das denúncias, o levantamento
pretendeu dar visibilidade à questão ambiental que
atinge especificamente aqueles que, correntemente, têm menos
condições de se fazer ouvir no espaço público.
Foi selecionada, em registros públicos, uma amostra de casos
em que alguma mobilização de membros da população
que habita áreas residenciais de baixa renda esteve na origem
das denúncias. Foram considerados de caráter ambiental
os conflitos desencadeados quando certas atividades ou instalações
afetam a estabilidade de outras formas de ocupação
em espaços conexos, sejam estes ambientes residenciais ou
de trabalho, mediante impactos indesejáveis transmitidos
pelo ar, pela água ou pelo solo.
Referente
ao período compreendido entre 1992 e 2002, o levantamento
resultou na identificação de uma amostra de 251 situações-problema
localizadas em 49 municípios do estado. Disposição
inadequada e lançamento clandestino de resíduos tóxicos,
poluição do solo, ar e água, convivência
de pessoas com valões, lixões e enchentes, implantação
de loteamentos em áreas inadequadas, comprometimento da pesca
artesanal pela atividade sísmica da prospecção
de petróleo no mar, deslocamento de populações
devido à poluição industrial ou à instalação
de resorts, danos provocados por atividade mineradora, vazamento
de óleo, privatização indevida de recursos
hídricos, entre outras situações – os
casos registrados pela pesquisa mostram realidades e estratégias
de atores sociais envolvidos na apropriação conflitiva
dos ambientes no estado do Rio.
Os
casos levantados foram organizados em fichas que identificam os
atores envolvidos, a data das denúncias, os denunciantes,
o histórico dos eventos, assim como os documentos que serviram
de fonte das informações. O levantamento está
sistematizado em CD ROM que contém também vídeos
e fotografias ilustrativas.
“Zonas
de sacrifício”
A
pesquisa apontou que certas localidades destacam-se por serem objeto
de uma concentração de práticas ambientalmente
agressivas atingindo as populações de baixa renda.
Os moradores dessas áreas convivem ao mesmo tempo com a poluição
industrial do ar e da água, depósitos de resíduos
tóxicos, solos contaminados, ausência de abastecimento
de água, baixos índices de arborização,
riscos associados a enchentes, lixões e pedreiras. Nestes
locais, além da presença de fontes de risco ambiental,
verifica-se também tendência a sua escolha como sede
da implantação de novos empreendimentos de alto potencial
poluidor. Tais localidades são chamadas, pelos estudiosos
da desigualdade ambiental, de “zonas de sacrifício”
ou “paraísos de poluição”, locais
onde a desregulação ambiental favorece os interesses
econômicos predatórios, assim como as isenções
tributárias o fazem nos chamados “paraísos fiscais”.
Nestas
áreas, observa-se a conjunção das decisões
de localização de instalações ambientalmente
danosas com a presença de agentes políticos e econômicos
empenhados em atrair para o local investimentos de todo tipo, qualquer
que seja seu custo social e ambiental. Estes dois processos tendem
a prevalecer em áreas de concentração de moradores
de menor renda e menos capazes de se fazerem ouvir nos meios de
comunicação e nas esferas de decisão.
Este
é o caso, no Estado, do perímetro delimitado pelo
município de Itaguaí (áreas da Ilha da Madeira
e do entorno do Porto de Sepetiba) e a zona oeste do Rio (Santa
Cruz e parte de Campo Grande). Em Itaguaí, as populações
enfrentam a poluição hídrica, ocasionada pela
ausência de saneamento e o abandono de resíduos tóxicos
pela empresa Ingá Mercantil; há ali também
registro de conflitos associados à ampliação
e às atividades no porto de Sepetiba, atingindo os pescadores
tradicionais (devido à contaminação e à
diminuição dos cardumes); recentemente o município
foi escolhido para abrigar uma usina termelétrica a carvão,
projeto que não se concretizou por conta de resistências
da população. Nas proximidades do distrito industrial
de Santa Cruz, os impactos provêm da ausência de saneamento,
do lançamento de poluentes no ar e na água, dos sítios
contaminados remanescentes de fábricas desativadas, dos sucessivos
descartes de resíduos tóxicos em localidades nomeadas
de “Bota Fora” (ver casos de descarte clandestino no
caminho Foz do Jordão em 1992; descarte clandestino seguido
de incêndio em 1993; vazadouro clandestino de resíduos
de fábrica de cerveja em 1997; aterro clandestino com resíduos
em 1997; intoxicação nos assentamentos Araguaia e
Nova Canudos em 2001; intoxicação da população
em Santa Cruz em 2001)
Outra
zona de sacrifício identificada é o distrito de Adrianópolis
em Nova Iguaçu, localizado no entorno direto da Reserva Biológica
do Tinguá. O bairro, que foi inicialmente escolhido para
sediar o primeiro aterro de resíduos tóxicos do estado
– a Central de Tratamento de Resíduos – CENTRES
- escolha que terminou por não se efetivar - abriga um grande
depósito de ascarel e é cortado por gasodutos e linhas
de transmissão de energia; em 2003, foi ali implantado um
aterro sanitário, após longa batalha judicial entre
moradores e Prefeitura. Os habitantes da região delimitada
pela RJ 113 e o Rio Iguaçu (que compreende os distritos conexos
de Vila de Cava, Marambaia e Adrianópolis), muita rica em
mananciais, assistiram à degradação dos seus
recursos ambientais pela operação do lixão
da Marambaia e outros vazadouros clandestinos. Descartes irregulares
de resíduos industriais nesta área aumentam o temor
da contaminação das águas subterrâneas
que abastecem as comunidades.
Os
encaminhamentos
Após
as denúncias de agressões ambientais, os encaminhamentos
para os conflitos no estado do Rio podem resultar em:
1-
Ações diretas (de realização de estudos
para caracterizar o impacto, de redução dos riscos,
de imposição de ações corretivas e mitigadoras
aos agentes responsáveis pelos danos, de retirada e destinação
adequada dos resíduos, de aplicação de penalidades,
de remoção de populações, de suspensão
de concessões, de autuação, de interdição,
de imposição aos agentes responsáveis pelos
danos de ações corretivas do sistema produtivo para
adequá-lo às normas ambientais);
2-
Ações indiretas (de coordenação de empresas
para apoio no socorro emergencial, de orientação das
organizações locais para cuidados médicos);
3-
Apresentação pública de justificativas e propostas
de ação (apresentação de promessas,
de justificação de inação por falta
de meios, de proposta de mudança institucional, de argumentos
para a irresponsabilização de órgãos
públicos e empreendedores, diluição de evidências
e de relações causais).
4-
Ações judiciais (instauração de Inquérito
Civil; abertura de Ação Civil Pública; celebração
de Termos de Ajustamento de Conduta – TACs- entre as agências
ambientais e o empreendedor, com a mediação do Ministério
Público, Estadual ou Federal).
O TAC compromete o ator que comete irregularidades ambientais a
cumprir uma série de medidas definidas em um cronograma.
Dezenas de prefeituras assinaram TACs, em virtude dos lixões
que operam. As grandes empresas estatais e multinacionais em operação
no estado também assinaram TACs. Com a celebração
do TAC, o Ministério Público tende a dar por encerrado
o problema, mas a assinatura do documento não significa necessariamente
o cumprimento das exigências. Como as agências ambientais,
com sua estrutura insuficiente, têm dificuldade em exercer
seu poder de fiscalização, os danos infligidos às
populações tendem a perdurar (caso do Zinco no Porto
de Sepetiba, Itaguaí, 2002).
Observa-se
que para o sucesso das ações de controle ambiental,
emitir licenças não basta. Nos casos de denúncias
associadas à mineração, por exemplo, grande
parte dos conflitos têm origem em empreendimentos licenciados
que desobedecem regras de funcionamento ou extrapolam a área
de atuação originalmente estabelecida em na Licença
de Operação (em Miguel Pereira, três dos quatro
casos registrados de mineração, ocorridos em 2001
e 2002, são desse tipo). Os conflitos associados à
presença de depósitos de resíduos licenciados
são exemplos de que licenciar apenas não basta: é
preciso fiscalizar.
A
institucionalização dos conflitos
Ministério
Público Estadual (MPE) e Ministério Público
Federal (MPF), quando acionados em virtude de denúncias,
instauram procedimentos administrativos (PRAD) internos com o intuito
de recolher e sistematizar informações que caracterizem
o objeto da denúncia, os possíveis danos causados
e os responsáveis pelos mesmos. Durante a formação
do PRAD, Promotores do Estado e Procuradores da República
oficiam a FEEMA ou o IBAMA, requisitando laudos técnicos
e dados especializados sobre os problemas denunciados. Eles pedem
às agências ambientais cópias de licenças
e outros documentos pertinentes ao licenciamento de empreendimentos
e atividades, cópias de Relatórios de Impacto Ambiental,
mapas de Unidades de Conservação e realização
de vistorias. O Ministério também oficia prefeituras,
requisitando informações sobre concessão de
alvarás, legislação e zoneamento dos municípios.
Se
as informações recolhidas pelo MPF ou MPE verificarem
ou apontarem para a existência de irregularidades ambientais,
seja na forma de dano ao ambiente ou a grupos sociais, o Procedimento
Administrativo é transformado em Ação Civil
Pública (ACP), instrumento legal que visa punir responsáveis,
exigir soluções, corrigir e mitigar os problemas.
Os Procedimentos Administrativos também podem originar Termos
de Ajustamento de Conduta (TAC) ou ações criminais
contra os responsáveis por crimes ambientais. No entanto,
a verificação de possíveis danos, a adoção
de medidas para adequação das atividades mantidas
por empreendedores ou poder público, a responsabilização
dos que cometem crimes ambientais e a mitigação dos
impactos sobre os ambientes e comunidades são por vezes comprometidos
por dificuldades surgidas na interlocução e troca
de informações entre agências ambientais, prefeituras
e Ministério Público.
Dada
a carência de meios nos órgãos públicos,
ofícios enviados à FEEMA e ao IBAMA pelo Ministério
Público Estadual ou Federal, durante a composição
dos Procedimentos Administrativos, ou mesmo após a abertura
de uma Ação Civil Pública, costumam não
ser atendidos nos prazos estipulados (ver caso de Ocupações
irregulares na Ilha Grande, 2000). Em determinadas ocasiões,
as respostas contêm lacunas que obrigam a expedição
de novos documentos pelo Ministério Público. Uma interlocução
mais estreita e ágil entre o poder judiciário e poder
público municipal também faz falta para a adoção
de medidas em relação aos conflitos vividos nas localidades
- representantes de prefeituras também deixam a desejar no
respeito aos prazos requeridos para o envio de informações
ao Ministério Público e há casos de administrações
que encerram seus mandatos sem atenderem aos ofícios do MP
Estadual ou Federal (casos de ocupações irregulares
na Ilha Grande em 2000; falta de dragagem de canal no centro de
Nova Iguaçu em 2002).
Questionados
a este respeito, representantes da FEEMA alegaram que por dificuldade
de estabelecer prioridades, o Ministério Público envia
um grande número de ofícios ao órgão,
que não dispõe de estrutura suficiente para atender
a tantos pedidos. O diálogo dificultado entre as instâncias
pode contribuir para o agravamento dos impactos e tornar os processos
de mitigação mais custosos e complicados, acabando
por penalizar comunidades e beneficiar os responsáveis pelas
irregularidades ambientais (casos Ingá Mercantil em Itaguaí
em 2002 e CENTRES em Queimados, 1998).
Quando
o conflito não encontra o caminho de sua institucionalização,
por outro lado, observa-se a eclosão de episódios
violentos, como saque de equipamentos e materiais de fábricas
desativadas e incendiadas sob tiroteio com a polícia (caso
da Cirpress no Rio de Janeiro em 1995), depredação
de móveis, subtração de bombonas, incêndio
de materiais, queima de pneus e apedrejamento de empresas (caso
de uma automecânica no Rio em 1994).
A
análise dos 251 casos levantados sugere que o incremento
da capacidade de se prevenir e dar tratamento democrático
aos conflitos ambientais seria possível desde que os órgãos
públicos fossem fortalecidos e que se intensificasse a participação
da população nos estudos de impacto, no acompanhamento
dos processo de licenciamento e no controle público do respeito
às normas ambientais em vigor.
|