Íntegra
do texto “Um Saber Muito Novo”, de Nilma
Lacerda, transmitido pela TVE na Série Brasil Alfabetizado
SALTO
PARA O FUTURO/ TVE
SÉRIE BRASIL ALFABETIZADO
Setembro de 2003
Consultora Jane Paiva
UM
SABER MUITO NOVO – A LETRA E O LIVRO NA VIDA DE TODOS
Nilma Lacerda
Tantas perguntas sobre alfabetização, tanto investimento
em metodologia, tanta angústia pelos resultados alcançados,
situados sempre aquém de uma expectativa institucional e
pessoal, e pouca atenção ao fato de que no campo da
leitura e escrita a humanidade lida com um saber muito novo, que
vem sendo gerado há apenas seis mil dos trinta e cinco milhões
de anos – como querem uns, dez milhões, como querem
outros – das espécies do gênero Homo, entre as
quais o Homo sapiens sapiens, onde nos incluímos.
Tomemos a vertente dos dez milhões de anos. Se quisermos
estabelecer uma proporcionalidade, o tempo da escrita e da leitura
corresponde a seis centésimos (0,06) da existência
da espécie humana, e, numa proporção muito
menor, teríamos os quinhentos e cinqüenta anos da idéia
de livros para muitos, quando Gutemberg aperfeiçoa a invenção
da imprensa. No Brasil, tem cerca de quarenta anos a idéia
de que todas as pessoas devem saber ler e escrever – é
um conhecimento novo, novíssimo, esse em que estamos nos
movimentando.
Com a humildade e alegria de uma inauguração, é
que precisamos nos ocupar de produzir este saber novo: o direito
de saber ler e escrever para todos os brasileiros. Leitura e escrita
são tecnologias, tecnologias do eu, tecnologias de ponta:
o acesso a esses bens simbólicos precisa estar assegurado
a cada indivíduo em nosso país. Ler e escrever produz
riqueza. Riqueza física, material: as nações
ricas são nações de leitores, e de leitores
que escrevem – escritores, portanto.
Processo
autoral, escrever é um ato que requer uma exposição
do sujeito e tem sido, ao longo da História, posse das elites
econômica e social, que procuram monopolizá-lo para
si, dificultando a outros segmentos a apropriação
dessa competência.
(....)
Nos vários idiomas consultados, o par leitor/escritor sofre
uma dissociação artificial e perversa, assinalando
típica reserva de mercado, na qual aquele que lê não
se torna sujeito da escrita. Nesse contexto, parece natural a formulação
do ato de escrever como prática distanciada do cotidiano,
mesmo no caso de profissionais cujo desempenho necessita da escrita
para o próprio projeto de trabalho: “Se escrever é
tarefa de artista e eu não sou escritor, como escrever minha
prática pedagógica?” – e isso se estende
para a vontade de uma vida melhor, planos para o futuro e vontades
políticas.[1]
No
processo de formar leitores e escritores, muitas vezes não
se leva em conta o saber de um e outro lado, as diferenças
de conhecimento estabelecidas por parâmetros diversos de tempo
e espaço. O lugar da escrita deve ser esse lugar em que os
saberes diversos se tocam e se trocam: como num romance, em que
o saber do camponês encontra espaço numa descrição
da colheita; o saber do gari cabe numa reflexão sobre o consumo,
o da cozinheira sobre a origem dos alimentos, o da professora sobre
as dificuldades e alegrias nas relações com os alunos.
O lugar da leitura precisa, por sua vez, ser esse lugar que permita
reflexões intensas e transformadoras, capazes de causar deslocamentos,
permitir que uma situação seja vista através
de pontos de vista inusitados. Abrir um território de saberes
comuns para o aprendizado da leitura e da escrita é essencial
para o sucesso do projeto. E um território em que o educador
reconheça, humilde, que sabe algumas coisas, não todas.
Como o jovem que trata a mãe com ironia, pelo seu desconhecimento
de informática: “ – Você não sabe
salvar um arquivo? É tão simples, todo mundo sabe.”,
e, precisa reconhecer, logo depois, seus próprios limites:
“ – Você não sabe como fazer para cozinhar
um ovo, meu filho? É tão simples, todo mundo sabe.”
Tempos diferentes, espaços diferentes geram saberes diferentes
que precisam se intercambiar na construção deste projeto,
comum e novo, em que nos empenhamos.
Uma das questões centrais do humano, o tempo é um
elemento central no processo de alfabetização. Retomando
a sabedoria do Eclesiastes, um dos livros da Bíblia, há
um tempo de aprender e um tempo de exercer o que se aprendeu, um
tempo de aprender e um tempo de esquecer – se não foi
exercido, aquilo que se aprendeu. Ensinar uma pessoa a cozinhar
e privá-la dos alimentos a serem preparados é determinar
o esquecimento da ciência que a ela foi dada. Mais tarde,
ao ter que preparar um arroz, ela deve se lembrar dos ensinamentos
que recebeu, mas cheio de lacunas: o arroz vai ficar insosso, ou
salgado; cozido demais, ou meio cru; empapado ou queimado. Aprender
sem exercer é perder o tempo no esquecimento.
Alfabetizadas, mas sem material de leitura, as pessoas acabam esquecendo
rapidamente aquilo que tanto esforço custou a tantos. Aprender
a ler não é – como se pensa com freqüência
– aprender a decodificar. Aprender a ler é compreender
o que um texto expõe, é alcançar o sentido
de um texto escrito. E isso está muito além do código,
se insere antes numa rede de relações fornecida pela
cultura escrita. Por isso, se emprega hoje o termo letramento, que,
mais do que alfabetização, significa a competência
de lidar com a cultura escrita.
Não é um processo natural, lidar com a escrita. Livros
e outros impressos não são objetos da ordem do natural;
nossa relação com eles não se estabelece num
impulso natural, ou imitativo – como aprender a andar. Produção
cultural, bastante sofisticada, da sociedade humana, a cultura escrita
exige atitudes elaboradas. Não se aprende a ler como se aprende
a falar. O ensino da leitura e da escrita exige mediação,
e mediação qualificada. Nessa mediação,
o sentido e a finalidade do ato de ler e de escrever deve se estabelecer
com clareza e precisão.
As autobiografias de escritores costumam ser um espaço privilegiado
para reflexão e análise da construção
desse sentido, o que inclui o material oferecido para a alfabetização.
As cartilhas ou livros didáticos comumente usados para alfabetizar
artificializam o texto escrito, empregando fórmulas rígidas
em que a presença da letra costuma vir descontextualizada,
isto é, fora dos lugares em que o sentido pode ser produzido.
Em Infância (1945), Graciliano Ramos (1892-1953) evidencia
o quanto um material inadequado pode obstar o aprendizado da leitura
e da escrita.
...meti-me
na soletração, guiado por Mocinha. (....) Gaguejei
sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam
sentenças graves, arrevesadas, que me atordoavam. (....)
“A preguiça é a chave da pobreza – Quem
não ouve conselhos raras vezes acerta – Fala pouco
e bem: ter-te-ão por alguém.”
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber
que fazia ele na página final da carta.[2]
Autora
portuguesa contemporânea, Teolinda Gersão (1940), tem
– na pequena obra-prima que é Os Anjos (2000) –
a descrição das humilhações a que narradora
é submetida, por não conseguir repetir as fórmulas
silábicas que a professora apresenta a ela, aluna de freqüência
irregular às aulas, pois precisa tomar conta da mãe
doente; desprezada a cartilha, é no almanaque que a menina
vai se alfabetizar.
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